As imagens do país desse cinema
entraram nas palavras das canções
Caetano Veloso
Mesmo que os cantores
sejam falsos como eu
Serão bonitas, não importa
São bonitas as canções
Chico Buarque
Para Roberto M. Moura, in memoriam
(*) Com a providencial e preciosa colaboração de Aldir Blanc, André Filho, Antônio Maria, Aguile Chaves, Ary Barroso, Ataulfo Alves, Baden Powell, Billy Blanco, Braguinha, Caetano Veloso, Carlinhos Vergueiro, Carlos Imperial, Cartola, Chico Buarque, Didi & Mestrinho, Dom & Ravel, Dorival Caymmi, Duda Machado, Edu Lobo, Elton Medeiros, Francis Hime, Ferreira Gullar, Geraldo Carneiro, Geraldo Queiroz, Gilberto Gil, Gonzaguinha, Guilherme de Brito, Guinga, Hermínio Bello de Carvalho, Ismael Silva, João Nogueira, Jorge Benjor, Lamartine Babo, Luiz Antônio, Luiz Bandeira, Luiz Bonfá, Mário Lago, Marcos Valle, Macalé, Martinho da Vila, Mirabeau, Moacyr Luz, Monsueto, Nelson Cavaquinho, Noel Rosa, Novelli, Paulinho da Viola, Paulo César Freital, Paulo César Pinheiro, Paulo Marques, Paulo Sérgio Valle, RobertErasmo Carlos, Ronaldo Bôscoli, Sérgio Ricardo, Silas de Oliveira, Tito Madi, Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Wilson Baptista, Zé Kéti.
Abre a cortina do passado-presente. Dessa janela, sozinho, ouvir a cidade me agitacalma. Nas noites claras de luar, a mulata sestrosa de olhar indiferente. Como num romance, o homem de meus sonhos me apareceu no dancing. O filme quis dizer "Eu sou o samba". Era mais um. A voz do morro rasgou a tela do cinema. Ele me comia com aqueles olhos de comer fotografia. E a luz do nosso canto – e as vozes do poema – necessitaram transformar-se tanto que o samba quis dizer: eu sou cinema. Eu disse xiiiis. E o filme disse: eu quero ser poema. E de close em close fui perdendo a pose. E até sorri, feliz. Como no cinema, me mandava às vezes uma rosa e um poema. Foco de luz. Eu, feito uma gema, me desmilinguindo toda ao som do blues. Mas quero ser filme e filme-filme. Disse ele que agora só me amava como esposa, não como star. E o samba agora diz: eu sou a luz. Quero ser velho de novo eterno, quero ser novo de novo. Nunca mais romance, nunca mais cinema, nunca mais drinque no dancing. Quero ser Ganga bruta e clara gema. Nunca uma espelunca. Eu sou o samba viva o cinema.
Lugar no futuro
Nem bem bebeu da batida Doce Ilusão, nem bem provou o famoso feijão da Vicentina – e tinha gente de todo o lugar no Pagode do Vavá – o pivete que só comia luz lambuzou de verde-amarelo o sinal fechado e saiu gritando Eu te amo meu Brasil! Eu te amo! E saiu correndo pra pegar o seu lugar no futuro. E feito luz sumiu na poeira das ruas.
Era fevereiro quase março, e o Rio de muitos janeiros continuava lindo. E lá vinha o Carnaval e a madrugada que vem raiando. Na vida uma nova canção: é de manhã, vem o sol. De manhã, tão bonita manhã. Me dê a mão, vamos sair por aí sem pensar, me dê a mão: vamos sair pra ver o sol. Olhos abertos em vento sobre o espaço do Aterro, sobre o espaço sobre o mar. Quem vai ao cinema, quem vai ao teatro. O mar vai longe do Flamengo, o céu vai longe e suspenso.
Quem vai ao trabalho, quem vai descansar. O céu vai longe do Outeiro, o céu vai longe da Glória. Quem canta, quem pensa na vida. O céu vai longe suspenso em luzes de luas mortas. Lá não tem brisa não tem verde-azuis não tem frescura nem atrevimento. Lá não figura no mapa. No avesso da montanha, é labirinto, é contrassenha, é cara a tapa. Fala, Penha. Fala, Irajá. Fala, Olaria. Fala, Acari, Vigário Geral. Fala, Piedade. Casas sem cor ruas de pó, cidade que não se pinta, que é sem vaidade. Quem olha a avenida, quem espera voltar. Os automóveis parecem voar. Luzes de uma nova aurora que mantém a grama nova e o dia sempre nascendo.
Vamos juntos cantar o azul da manhã que nasceu. Vento do mar e o sol a brilhar. Calçada cheia de gente a passar e a me ver passar. Grafite e diamante, um brejo em Irajá. Negro Caribe, mar fundão de Paquetá. Cidade Maviosa, rascunho da saudade. Rio que mora no mar. E o mar na palma da mão é sal, é sol, é sul. São mãos se descobrindo em tanto azul. Pelas manhãs tu és a vida a cantar. Já mandei lhe entregar o mar que você viu, que você pediu outro dia em Copacabana. Os sonhos, todos os desejos seus: um mar azul mais distante e a estrela mais brilhante lá do céu. O mar, eterno cantor, ao te beijar ficou perdido de amor. E hoje vive a murmurar: só a ti Copacabana eu hei de amar.
Da janela a cidade se ilumina como nunca jamais se iluminou. São três horas da tarde, é domingo na cidade, no Cristo Redentor. As notícias que leio conheço, já sabia antes mesmo de ler. Qual o filme que você quer ver. Vai, faz ouvir os acordes do choro-canção. O sol vestiu terno de linho e chapéu Panamá e brilhou bem mais feliz quando Leila Diniz foi cabocla de Yemanjá. Desbanca a outra, a tal que abusa de ser tão maravilhosa. Na boca da noite de Elis uma luz vadiava. A lua bebeu Moët & Chandon num motel do Joá e brilhou bem mais feliz quando era uma glória Darlene escandalizar. Lá não tem moças douradas, não tem turistas, não sai foto nas revistas. Fala, Maré. Fala, Madureira. Fala, Pavuna. Fala, Inhaúma. Cordovil, Pilares. Espalha a tua voz nos arredores, carrega a tua cruz e os teus tambores.
Ah, o azul, o azul, cor de nossa devoção. Não qualquer azul, azul de qualquer céu, qualquer dia. Aquele azul que não era do céu nem era do mar. Do Rio que é baía. Guanabarabaía que sorri de tudo, serras de veludo. Lá não tem claro-escuro. A luz é dura. A chapa é quente. Que futuro tem aquela gente toda. Perdido em ti, eu ando em roda. É pau, é pedra, é fim de linha. É lenha, é fogo, é foda. Fala, Penha. Fala, Irajá. Fala, Encantado, Bangu. Fala, Realengo. Fala, Maré. Fala, Madureira. Fala, Meriti, Nova Iguaçu. Fala, Paciência, Piedade & adjacências.
O resto é mar
As águas vão rolar perdidamente trem, perdidamente bala, vagão no ar, bicão passando ao largo, Penha singular. As chaves da cidade Momo vai guardar. Quando vi você passar senti todo o meu corpo tomado. Foi um rio-Portela que passou em minha vida e meu coração se deixou levar. O resto é mar. Os olhos já não podem ver. Eu te vejo sumir por aí, te avisei que a cidade era um vão. Dá tua mão. A morena vai sambar, seu corpo todo balançar. Balança toda pra andar. Balança até pra falar. Balança mesmo que é bom, do Leme até o Leblon. Eu vejo na luz dos seus olhos as noites do Rio ao luar. Vejo o mesmo mar, balan-balançando sem parar. Coisas que só o coração pode entender. Os letreiros a te colorir embaraçam a minha visão. Fundamental é mesmo o amor. Copacabana, Copacabana. Cristo Redentor. Cada clarão é como um dia depois de outro dia. Este samba é só porque, Rio, eu gosto de você. O resto é mar.
É tudo que não sei contar. É ela menina que vem e que passa num doce balanço. Você passa, eu acho graça. Passas sem ver teu vigia catando a poesia que entornas no chão. Nessa vida tudo passa e você também passou. Por causa do amor, do corpo dourado, do sol de Ipanema. A beleza resiste, e tudo assim tão triste. Em Ipanema, em que bar, em que cinema te esqueces de mim. Da primeira vez era a cidade, da segunda o cais e a eternidade. No sinal fechado ele vende chiclete, capricha na flanela e se chama Pelé. Pinta na janela, batalha algum trocado, aponta um canivete. E até. Vou querer viver em paz: o destino é quem me diz. Agora eu já sei – quando ela passa, a beleza que existe, o mundo inteirinho se enche de graça. Agora eu já sei da onda que se ergueu no mar.
Por causa do amor e das estrelas que esquecemos de contar. Enquanto a noite vem nos envolver, o amor se deixa surpreender. O resto é mar. Menino do Rio, calor que provoca arrepio. Tensão flutuante do Rio. No meu lado delinquente, tem sempre um tipo valente que tem olhar muito louco e desafia o futuro. Que ama o cheiro da rua, costuma andar na avenida no lado escuro onde a vida continua. Eu canto pra Deus proteger-te. Menino vadio, tensão flutuante do Rio. Eu canto pra Deus proteger-te. Tudo o que sonhares, todos os lugares, as ondas dos mares. Eu canto pra Deus proteger-te. Na contramão, dança paralama, sobe no passeio, não se liga em freio, nem direção. No sinal fechado ele transa chiclete. E se chama pivete. Tensão flutuante do Rio.
Celeiro de bambas
Quando pensa no futuro, não esquece o passado aquele sambista – também vindo do Pagode do Vavá. E dança na dança da solidão. Quando vem a madrugada seu pensamento vagueia. Água de beber. Eu quis amar, mas tive medo. Água de beber. O amor sabe um segredo. Mas a fonte secou. Eu sempre tive uma certeza, que só me deu desilusão. Eu não sou água pra me tratares assim. É que o amor é uma tristeza, muita mágoa demais para um coração. Água de beber. Só na hora da sede é que procuras por mim.
Deixa São Carlos falar, deixa o Salgueiro dizer: fala, Mangueira – mostra a força da sua tradição. Sei lá, não sei. Mangueira é celeiro de bambas. Os versos de Mangueira são modestos, mas há sempre força de expressão: seus barracos são castelos em nossa imaginação. O morro veio me chamar. A minha música não é de levantar poeira, mas pode entrar no barracão onde a cabrocha pendura a saia no amanhecer da quarta-feira. Me sinto pisando um chão de esmeraldas. Mangueira, estou aqui na plataforma da Estação Primeira. Sob uma chuva de rosas, meu sangue jorra das veias. De terno branco e chapéu de palha vou me apresentar à minha nova parceira. Já mandei subir o piano pra Mangueira.
Sei lá, falaram tanto. Mas dessa vez a morena não foi embora. Morena boca de ouro que nos faz sofrer, o teu jeitinho é que me mata. Eu sou o samba, morena. Disseram que você era a maioral. Era. Roda morena, cai não cai. Ginga morena, vai não vai. Eu sou o samba, morena, sou natural aqui do Rio de Janeiro. Meu coração é um pandeiro marcando o compasso de um samba feiticeiro. O amor é um samba tão diferente. A voz do morro sou eu mesmo, sim senhor. Vista assim do alto, a Mangueira mais parece um céu no chão.
Quando eu piso em folhas secas caídas de uma mangueira penso na minha escola e nos poetas da minha Estação Primeira. Habitada por gente simples e tão pobre, que só tem o sol que a todos cobre, como podes, Mangueira, cantar? A poesia fez um mar, se alastrou, Não sei quantas vezes subi o morro cantando. Sempre o sol me queimando. Quando o tempo avisar que eu não posso mais cantar, sei que vou sentir saudade, ao lado do meu violão, da minha mocidade.
Corre e me socorre
Rio de Janeiro, eu sou mais você. Rio Babilônia. Rio de Vasco e Botafogo, América e Bangu. Maracanã vibrando em dia de Fla-Flu. Rio da alegria geral. Urbana, suburbana e rural. São Cristóvão, Paço Imperial, Quinta da Boa Vista. Mangueira, Estação Primeira. Maracanã com Flamengo. E o samba em Madureira. Maracanã é nossa catedral. E com a Mangueira do seu lado, é bom sinal. Quando eu ficar assim, morrendo após o porre, Maracanã, meu rio, ai corre e me socorre. Chapinha premiada e lata de sardinha. O castigo e o perdão. O modess e a camisinha. Injeta em minhas veias teu soro poluído de pilha e folha morta. Ai, rio do meu Rio. Ai, lixo da cidade. Fique de olho no apito, que o jogo é na raça e uma luta se ganha no grito. Sou tricolor de coração. Para estufar esse filó como eu sonhei só se eu fosse o Rei. Fascina pela sua disciplina, o Fluminense me domina. Para aplicar uma firula exata, pintura mais fundamental que um chute a gol, com precisão de flecha e folha seca. Hei de torcer, torcer. Hei de torcer até morrer. A torcida americana é toda assim, a começar por mim.
O domingo é de guerra, o boteco é do lado. Na hora marcada, a meia rasgada, o joelho ralado. Para avançar na vaga geometria, o corredor na paralela do impossível, é debaixo de chuva, é debaixo de sol. No sentimento diagonal do homem-gol, rasgando o chão e costurando a linha. Botafogo, Botafogo, campeão desde 1910. É a falta de sorte, é a vida, é a morte. É a contrapartida. Um senhor chapéu para delírio das gerais no Coliseu. Na estrada dos louros, um facho de luz tua estrela solitária te conduz! É a fome, é a sede, é a bola na rede, a torcida a favor. Uma vez Flamengo, sempre Flamengo. Para anular a natural catimba do cantor. Vencer, vencer. Uma vez Flamengo, Flamengo até morrer. Para captar o visual de um chute a gol e a emoção da idéia quando ginga. Sou tricolor do coração. Botafogo, Botafogo, campeão. Hei de torcer até morrer.
Como um ladrão
Chispando num outro sinal fechado, o pivete não mais vende chiclete nem capricha na flanela. E manda de lá: como um ladrão, roubei. Rostos, restos, risos. Logo dobra a Carioca, desce a Frei Caneca, se manda pra Tijuca, sobe o Borel. Como um ladrão, corri riscos, mares, medos. E meio se maloca e agita numa boca e descola uma mutuca e um papel. E fui deixando rastros, marcas, mortes. Afiando o canivete, rebate de lá o pivete: e carregando pedras, presas, pesos. E me entregando sempre, pelo prazer de ter as sensações totais. E desprezar o tempo, o tédio, o certo. Pois é, tudo começou assim. Alguém se vingou em mim, inventando o que eu não pratiquei.
Samba solto por dentro – olé-olé, olé-olá – soltam seus alentos outros também sambistas saídos do Pagode do Vavá: não chore ainda não, que eu tenho um violão e nós vamos cantar. E lá vou eu, melhor que mereço, pagando a bom preço a evolução. A mão que toca um violão se for preciso faz a guerra. Ninguém aguenta a força de um samba, não. A voz que canta uma canção se for preciso canta um hino, louva a morte. Ai, se não fosse o violão e o jeito de fazer samba do tempo que quem fazia, ai, corria do camburão. Hoje não corre não. Quem, no aceso da paixão, entregou o coração a uma mulher não soube o mundo compreender. Ai, se eu pudesse entender o que dizem os seus olhos, esse seu olhar que quando encontra o meu fala de umas coisas que eu não posso acreditar. Onde andarás nesta tarde vazia, tão clara e sem fim. Amor é assim, faz tudo mudar. Mas a ilusão quando se desfaz dói no coração de quem sonhou. De quem se deixou escravizar e, no abismo, por um amor qualquer despencar. E é por isso que eu saio pra rua sem saber pra quê. Na esperança talvez de que o acaso por mero descaso me leve a você.
Foi quando topei com você. Parei, procurei, não encontrei nem mais um sinal de emoção. Sem briga, sem nada demais. Porque a bagunça que eu fiz, machucado, bagunça que eu fiz tão calado, foi dentro do meu coração. Covarde sei que me podem chamar. Eu sei que vão censurar o meu proceder porque não calo no peito essa dor. Nem vai o mundo compreender. Eu sei, mulher, que você mesma vai dizer que eu voltei pra me humilhar. Se você jurar que me tem amor eu posso me regenerar. Mas se é para fingir, mulher, a orgia assim não vou deixar. É, mas não faz mal. Nossa imaginação pelo espaço, vai, vai. Sem desconfiar que mais tarde cai para nunca mais voar. Você pode até sorrir. Perdão foi feito pra gente pedir. A minha alegria atravessou o mar e ancorou na passarela. Na madrugada agora ando perdido. Eu quero me esconder debaixo dessa sua saia pra fugir do mundo. Será que eu serei o dono dessa festa, um rei no meio de uma gente tão modesta? Vão me levando, vão me cantando, tenho entrada franca em qualquer botequim. Ao invés de maior, eu sou menor. Mas pretendo me embrenhar no emaranhado desses seus cabelos.
Ao invés de ser rei, eu sou plebeu. Acredito ser o mais valente, nessa luta do rochedo com o mar. É hoje o dia da alegria, e a tristeza nem pode pensar em chegar. Sou um samba e no amor eu sou mais eu. Seja na rua, seja no rádio me deixe hipnotizado pra acabar de vez com essa disritmia. Ou lá no morro, num gurufim, vem logo, vem curar seu nego que chegou de porre lá da boemia. Se você, num samba de gente bem – violão, pandeiro – não vai encontrar ninguém – tamborim na marcação – é porque o samba que vai nascer só vai mesmo acontecer quando houver um apito no samba. E reco-reco. Que bonito é um tamborim a batucar. E teleco-teco. Trabalho o ano inteiro sem tocar no rádio. Leva meu samba, meu mensageiro, este recado. Quero um samba na cidade, não põe corda no meu bloco nem vem com teu carro-chefe. Vejam esta maravilha de cenário: é um episódio relicário que o artista escolheu pra este carnaval. Não dá ordem ao pessoal, não traz lema nem divisa, que a gente não precisa que organizem nosso carnaval.
No meio de uma gente tão modesta eu vim descendo a serra cheio de euforia para desfilar. Hoje é dia do riso chorar. Nada pra beber, nada pra fumar, nada pra ligar. Assim não dá. Se não der vai ter que dar. Não sou candidato a nada. Meu negócio é madrugada, mas meu coração não se conforma. O meu peito é do contra e por isso mete bronca neste samba plataforma. O asfalto como passarela será a tela do Brasil em forma de aquarela. Tudo é belo e tem lindo matiz: o Rio do samba e das batucadas, dos malandros e mulatas de requebros febris. Por um bloco que derrube esse coreto, por passistas à vontade que não dancem o minueto. Este samba plataforma por um bloco sem bandeira ou fingimento, que balance e abagunce o desfile e o julgamento.
A voz do mar de lágrimas
Quem quiser saber como vai meu pobre coração ouve a voz do mar. Quem me navega é o mar. Pois é, tudo começou assim. Não sei como foste acreditar em mentira tão vulgar. Sofri a maior decepção. Não sei o que foi te derrubar o castelo que eu fiz. Pois é, tudo terminou assim. Jurar com lágrimas que me ama não adianta nada, eu não vou acreditar. Meu sabiá, meu violão, foi tudo o que ficou pra machucar. Quando você se separou de mim quase que a minha vida teve fim. Sofri, chorei tanto que nem sei. Viver não me custa nada. Só me custa a vida. Custa um samba, um samba e meio. Meu saldo deve ser bom. Quem me navega é o mar. Sal e lágrima.
Mas não venha querer me consolar que agora não dá mais pé nem nunca mais vai dar. Também quem mandou se levantar: quem levantou pra sair perde o lugar. Nas mãos a mesma viola onde eu gravei o teu nome. Venho do samba há tempo, nega, venho parando por ai. Mistura de branco com negro, mistura de ódio e vingança, mistura de amor e chamego. A tristeza é senhora, desde que o samba é samba é assim. Se eu for pensar muito na vida morro cedo, amor. A lágrima clara sobre a pele escura. Não choro pra ninguém me ver sofrer de desgosto. As rugas fizeram residência no meu rosto. Tudo isto, batido em compasso, é samba, é samba, é samba. Sei que vou morrer, não sei o dia. Hei de ter um alguém pra chorar por mim através de um pandeiro ou de um tamborim.
Em Mangueira quando morre um poeta todos choram. Vivo tranquilo em Mangueira porque sei que alguém há de chorar quando eu morrer. O samba é minha herança e eu mantenho a tradição. Sei que vou morrer, não sei a hora. Fala meu pandeiro, fala o ano inteiro, mostra a todo mundo o seu valor. E alguma coisa acontece no quando agora em mim. Cantando eu mando a tristeza embora. Canta meu Salgueiro, canta bem fagueiro. Eu quero morrer numa batucada de bamba, na cadência bonita do samba. Cabrochas de pele de bronze no Estácio, Salgueiro, Piedade. É samba, é samba, é samba. Da Vila Isabel, Praça Onze, dos cantos de toda cidade malandros por noites a fio nas gingas que o corpo descamba.
Com açúcar, com afeto – diz de lá a cabrocha – fiz seu doce predileto pra você parar em casa. Qual o quê! Com seu terno mais bonito, você sai, não acredito quando diz que não se atrasa. Certo dia fui levado a um samba diferente entre a gente da gravata e do plastrom. Na gafieira segue o baile calmamente com muita gente dando volta no salão. Bebida servida em taça, champanhe em vez de cachaça. Eu já corri de vento em popa, mas agora com que roupa? Com que roupa que eu vou pro samba que você me convidou? Tudo vai bem, mas eis porém que de repente um pé subiu e alguém de cara foi ao chão. Mesmo assim o samba lá é bom.
E nessa altura, como parte da rotina, o pistom tira a surdina e põe as coisas no lugar. Eu vi muita grã-fina bonita rebolando. Sambando, sambando. Não sabia que as distintas eram assim. Se eu soubesse também como era o ambiente, decente, jogava um pano legal por cima de mim. Pandeiros batendo, batendo, enquanto soluça uma flauta. O samba ainda vai nascer. Violões com a prima gemendo baixinho que a noite vai alta. O samba ainda não chegou. O samba não vai morrer. Macumba, despacho, muamba. Veja, o dia ainda não raiou. Quem é que não sabe? O samba é o pai do prazer. Foi num samba de gente bamba que eu te conheci, faceira. Fazendo visagem, passando rasteira. O samba é o filho da dor. O grande poder transformador. É samba, é samba, é samba.
O bar me chama, o samba espanta
Hoje eu vim andar contigo no espaço, tentar fazer em teus braços um samba puro de amor. Mas o mundo me condena e ninguém tem pena, falando sempre mal do meu nome, deixando de saber se eu vou morrer de sede ou se vou morrer de fome. Se quiser fumar, eu fumo; se quiser beber, eu bebo. Não interessa a ninguém se o meu passado foi lama. Hoje quem me difama, viveu na lama também. Anoiteceu. Outra vez vou sair, sem nada a esperar, sem ter pra onde ir. Sou da noite do Rio, da noite macia do Rio. Vou caminhar por aí a cantar. Eu sou deste bar que me chama. À noite a cidade é tão bonita, do Lamas ao Capela. Passo no Bar Luís e no Amarelinho é que eu vou terminar. Se meu passado foi lama, hoje quem me difama viveu no Lamas também. Guarda bem minha viola, meu amor e meu cansaço. Hoje eu vim sem saber nada, querendo aprender. Quanto a você da aristocracia, que tem dinheiro, mas não compra a alegria, há de viver eternamente escravo dessa gente que cultiva a hipocrisia. As coisas estão no mundo, só que eu preciso aprender. Agora, leva o recado a quem me deu tanto dissabor: diz que eu vivo bem melhor assim e que no passado eu fui um sofredor. E agora já não sou, o que passou, passou.
E pelo sambista passou-passou, zombando da vida, passou o malandro que vai se defendendo, mas sem querer se amofinar. O tamborim bateu, chamando o pessoal. Um violão gemeu num ritmo legal. E começou assim, em plena madrugada, um tamborim no samba de calçada visitando o sono da cidade. O samba espanta, ele diz e rediz, só porque a Dina subiu o morro do Pinto pra lhe procurar. Acreditava na vida, na alegria de ser, nas coisas do coração. Nas mãos um muito fazer. Sentava bem lá no alto, pivete olhando a cidade, sentindo o cheiro do asfalto. A Dina subiu, e não me encontrando – diz de lá o malandro – foi ao morro da Favela com a filha da Estela pra me perturbar.
Mas eu estava lá no morro de São Carlos quando ela chegou fazendo um escândalo, fazendo quizumba, dizendo que levou meu nome pra macumba. Desceu por necessidade, ó Dina, teu menino desceu o São Carlos, pegou um sonho e partiu. Havia um fogo em seus olhos, um fogo de não se apagar. Só porque faz uma semana que não deixo uma grana pra nossa despesa. Ela pensa que minha vida é uma beleza. Diz lá pra Dina que eu volto, que seu guri não fugiu. Eu dou duro no baralho pra poder comer. Só quis saber como é, qual é. A minha vida não é mole, não. Passado é um pé no chão e um sabiá. Presente é a porta aberta. E futuro é o que virá, mas, e daí? Amanhã bato a perna no mundo. É que o mundo é que é meu lugar. Eu já ando assustado, sem paradeiro. Sou um marginal brasileiro.
Só se cozinha ilusão, restos que a feira deixou. Mas Zelão dizia sempre a sorrir que um pobre ajuda outro pobre até melhorar. Choveu, choveu. A chuva jogou seu barraco no chão. Todo o morro entendeu quando Zelão chorou. Ninguém riu, ninguém brincou e era carnaval. O morro estava em festa quando alguém caiu. Mais um malandro fechou o paletó. Quatro velas acesas em cima de uma mesa. E uma subscrição para ser enterrado. Morreu Malvadeza Durão. Valente, mas muito considerado. Diz-rediz o malandro, diz-que foi fazer um samba em homenagem à nata da malandragem, que diz conhecer de outros carnavais.
Diz-que foi à Lapa e perdeu a viagem: aquela malandragem não existe mais. Tenta pensar no futuro, no escuro tenta pensar. Mas o malandro para valer, não espalha, aposentou a navalha. Dizem as más línguas que ele até trabalha, mora lá longe chacoalha, no trem da central. E manda de lá o velho-novo malandro: quem trabalha é que tem razão, eu digo e não tenho medo de errar. O bonde São Januário leva mais um operário: sou eu que vou trabalhar. Vai trabalhar, vagabundo! – rebate o malandro outro, de outroragora. Vai trabalhar, criatura. Malandro quando morre vira samba. Deus permite a todo mundo uma loucura. Vai te enforcar. Vai te entregar. Vai te estragar. Vai trabalhar... vagabundo!
Frutas, facas, alfavacas
Na feira livre do Estácio, preso numa roda de bamba, o malandro deu de cara com três turistas trêbados trauteando tartamudos Città meravigliosa! cheia de milencantos em meio a frutas, facas, alfavacas, frufru de feirantes e tutti quanti aliterantes. E súbito acontece uma mulata daquelas, uma que se dizia Florisbela. Era dia de Carnaval e o malandro fingiu que nem viu sua cabrocha de fé e moradia a lhe puxar pela camisa em meio a toda aquela algaravia. Sua velha cabrocha que no compasso do samba de lá dizia: Encontrei o meu pedaço na avenida de camisa amarela, cantando a Florisbela. Não estava nada bom o meu pedaço, trauteava a mulatantã. Na verdade estava bem mamado, bem chumbado, atravessado e foi por aí cambaleando, se acabando num cordão com o reco-reco na mão. Era dia de Carnaval quando alguém não se sabe de onde anunciou Portela! Portela! E o samba trazendo alvorada seu coração conquistou. Mais ainda: quando nem bem uma esquina dobrou, as portelas pernas ainda bambas, ele deu com um cara a cantar eu sou o samba, um mulato maneiro a dizer sou natural aqui do Rio de Janeiro e metendo bronca: em qualquer esquina eu paro em qualquer botequim eu bebo. E se houver motivo é mais um samba que eu faço. E podem me prender que eu não mudo de opinião.
Pelo que dizia, o mulato muitos amigos teria, e era pra lá de popular. Como aqueloutro, comandando o bloco que lá vinha. O que será que andam combinando no breu das tocas, que anda nas cabeças anda nas bocas? O que será que estão falando alto pelos botecos? E vinha de lá um magrelo sem queixo, cigarro caindo da boca: agora vou mudar minha conduta, vou tratar você com força bruta. O cinema falado é o grande culpado da transformação dessa gente. Que não tem governo nem nunca terá. Que não tem vergonha nem nunca terá.
Fecha a cortina do passado
O que será, eu sei, que o meu peito é lona armada. Circo vive é de ilusão. Chorei com saudades da Guanabara refulgindo de estrelas claras longe dessa devastação. Passei pelas praias da Ilha do Governador e subi São Conrado até o Redentor. Lá no morro Encantado eu pedi Piedade. Plantei Ramos de Laranjeiras, foi meu Juramento. No Flamengo, Catete, na Lapa e no Centro. Pois é, pra gente respirar, Brasil, Brasil, tira as flechas do peito do meu Padroeiro, que São Sebastião do Rio de Janeiro ainda pode se salvar. Eu poderia ficar sempre assim como uma casa sombria. Percorrer correndo os corredores em silêncio. Mas quero as janelas abrir para que o sol possa vir iluminar. Muita calma pra pensar e ter tempo pra sonhar. Sim, eu poderia procurar por dentro a casa, cruzar uma por uma as sete portas, as sete moradas. Mas eu prefiro abrir as janelas pra que entrem todos os insetos. Da janela vê-se o Corcovado, o Redentor, que lindo.
Agora, falando sério, eu queria não cantar. Meu Rio que não dorme porque não se cansa. Dou um chute no lirismo, um pega no cachorro e um tiro no sabiá. Não me leve a mal. Me leve à toa pela última vez ao quiosque, ao Planetário, ao Cais do Porto, ao Paço. Agora, falando sério, eu queria não mentir. Meu Rio que balança, sorrio, só Rio. Da janela vê-se o Corcovado. Estrela vulgar a vagar. Passou este verão, outros passarão. Eu passo. Mas tenho os olhos tranquilos. Sobre um pátio abandonado, profetas nos corredores, mortos embaixo da escada. Mas isso faz muito tempo. E outras palavras já queriam se cantar. De ordem e desordem, de loucura. O filme quis dizer "Eu sou o samba". A voz do morro rasgou a tela do cinema. Fecha a cortina do passado. Dessa janela, sozinho, olhar a cidade me acalma. Rio, e também posso chorar.
RW - 19.09.2004