Chico, Puskas, Jones: sempre mortíferos

Crônicas
         Comecei a ler "Budapeste" no Rio, há cerca de dois meses. Quase viro a noite, não fora o cansaço do dia-noite de viagem & trabalho e a já nova madrugada & dia e seus compromissos: algumas reuniões cariocas e textos & mais textos por fazer – lá e em acá/taguases. Abraçado ao mais novo romance de Chico Buarque, dormi sonhando com o time da Hungria na Copa de 1954, o famoso scratch húngaro entronizado por Armando Nogueira, com seus Ferenc Puskas, Kocsis, Hidegkuti, Zoltan Czibor e outros craques cujos nomes Chico embaralha no Rio-Budapeste de sua trama e faz personagens de seu livro. Mais dias-noites em trânsito, mais textos em transe madrugadas afora & compromissos noite-dia adentro – e só agora retomo Budapeste, semanas após a primeira empreitada.

         "Aí eu estou chegando quase", diz o escritor "fantasma" José Costa, ou Zsoze Kósta, tentando "falar" húngaro para a namorada magiar, que sorri imaginando sua chegada "em pedaços", ou quase. O personagem de Chico Buarque voltava de um "encontro anual de autores anônimos em Melbourne, encontro de profissionais que, por princípio, princípios não têm" e, no Rio, passa a criar "autobiografias, mercadoria com farta demanda reprimida" Romance onde nomes e lugares remetem a lugares e nomes reais ou fictícios, mas interligados a cada virar de página, acabamos às vezes até fazendo associações onde talvez não existam.

         É o caso de Teresa, que lembra Manuel Bandeira. Zsoze Kósta: "A escrita me saía espontânea, num ritmo que não era o meu, e foi na batata da perna de Teresa que escrevi as primeiras palavras na língua nativa". Bandeira: "A primeira vez que vi Teresa/ Achei que ela tinha pernas estúpidas/Achei também que a cara parecia uma perna". É intencional a perna de Teresa ou mera coincidência? E, língua nativa ou não, Bandeira ou não, Chico acaba passando poesia: "Zelosa dos meus escritos, só ela os sabia ler, mirando-se no espelho, e de noite apagava o que de dia fora escrito, para que eu jamais cessasse de escrever meu livro nela. E engravidou de mim, e na sua barriga o livro foi ganhando novas formas, e foram dias e noites sem pausa".

         "Mortífero". No jargão da juventude húngara vista pela ficção de Chico, a palavra significa "o máximo', que tanto pode ser "o máximo de bom, como o máximo de mau". Alguém lê o livro que o Zsose Kósta escrevera, livro dentro do livro, e diz "Mortífero!". Mortífero bom ou mau? "Mortífero assim-assim", é a resposta. Pois é, Budapeste é mortífero de muito bom. "Agora eu lia o livro ao mesmo tempo em que o livro acontecia", diz Chico lá pelas tantas. "Da língua que não estima", diz ele sobre seu personagem-escritor-anônimo, "ele mastigará as palavras bastantes ao seu ofício e ao dia-a-dia, sempre as mesmas palavras, nem uma a mais. E mesmo essas, haverá de esquecer no fim da vida, para voltar ao vocabulário da infância". E Budapeste acontecia em mim, como se num repente voltasse à infância.

         Os craques húngaros adentram o gramado de Budapeste sem que se diga quem são nem de onde surgiram esses nomes: o poeta Kocsis Ferenc (Kocsis, era atacante do scratch: Ferenc, o primeiro nome de Puskas, o mais famoso craque húngaro de todos os tempos, que vi atuar no Maracanã nos anos 60, numa noite de um inesquecível Santos x Real Madrid); o escrivão Puskas Sandor, o prosador Hidegkuti István (o centro-avante da equipe de 54); a praça Czibor, a avenida Bozsik (o genial meio-de-campo), "com suas bétulas em flor", segundo Kósta. A cada nome, o nome de Jones Walter Melo me surgia. A cada craque relembrado por Chico, Waltinho aparecia como se sorrisse, o sorriso morto de meu velho amigo recém-falecido.

         Os anos 50 aconteciam em mim, marcados pelo mover dos botões mágicos e de nomes idênticos manipulados por Jones Walter Melo na varanda de minha casa na Rua Dr. Sobral. Também em Cataguases o nosso scratch húngaro era imbatível. Eu e Jones, o meu amigo Waltinho, formávamos o mais invejável cartel de botões da cidade. Ele vinha do Bairro Granjaria para somar seus craques aos meus, no mais poderoso "button´s association" da história catuauá. Tão imbatíveis éramos que acabamos não mais dando colher-de-chá aos outros meninos: só enfrentávamos a nós mesmos, pois com os outros era pura covardia.

         Acompanhávamos a Copa enquanto ela acontecia, jogávamos os botões de nossa Copa, enquanto a varanda da rua Dr. Sobral transformava-se na Suíça onde corriam os outros craques em tempo real. Quem eram os craques verdadeiros, os de Melbourne ou os de Cataguases? Há controvérsias ainda hoje, pelo menos entre esses marmanjos que às vezes reencontro pelas ruas da memória, de volta ao vocabulário, sempre mortífero, da infância. Olhaí, Waltinho, como é que você foi fazer uma coisa dessas, abandonar o campo assim sem se despedir, sem sequer dar uma volta olímpica? Mortífero, esse seu jogo. Bem, assim-assim: aí eu estou chegando quase.

23.05.2004


Ronaldo Werneck