Incorreto e sem rumo

Crônicas
        A idéia era dar a Copa por encerrada, já que o Olé andou atrasando e nós estamos entrando em agosto, mês por si só já terrível, mas que este ano não nos poderá dar tanto desgosto quanto o julho que se finda. Faltam exatos cinco minutos para a meia-noite do dia 29 e espero não ver jamais de la vie um julho como este. Vai, ô cara, e me traga logo este agosto. Sua entrada em cena daqui a dois dias é sinal irrefutável de que tudo vai recomeçar. Afinal, faltam apenas quatro. Sim, apenas quatro anos para o Penta.

         Mas parece que a Copa não acabou naquele fatídico 12 de julho. Até hoje aquela verde-amarelada do meu xarazinho parece render frutos na mídia, até mesmo em publicações que jamais dariam tanto destaque para a suite da Copa: aquele ramerrão de matérias que vêem depois do acontecimento e acabam fatalmente "chovendo no molhado", não trazendo nenhuma informação nova. "Veja" deu capa, "IstoÉ" deu capa, os principais jornais do país deram manchetes sucessivas por vários dias e até hoje o "caso Ronaldinho" rende chamadas de destaque nas primeiras páginas. Uma verdadeira "convulsão" de opiniões as mais desencontradas.

        Até aí, nada. Porque nada de novo aconteceu até hoje sobre o assunto, o mais sigiloso da história recente deste país. Nem a doença de Tancredo foi assim tão nebulosa. Mas, até aí morreu Neves. Mesmo. Meu maior espanto nisso tudo foi ver a aparentemente "sisuda" revista "Time" dar duas de suas capas para a Copa, logo os norte-americanos que não levavam a mínima fé em seu time, mesmo porque na América o futebol ainda é um esporte semi-desprezado. Mas as forças econômicas por trás da realização da Copa falaram mais alto.

         A primeira capa que "Time" dedicou ao assunto foi logo no início, na edição de 15 de junho, com uma foto gloriosa de Ronaldinho em pleno drible, ao lado do título quase óbvio: "Com o começo da Copa do Mundo de 98, Ronaldo busca o quinto campeonato para o Brasil". No sumário, uma foto menor de Rivaldo em plena atividade, amortecendo a bola no peito do pé, com a legenda: "O brasileiro Rivaldo mostra a forma de seu time campeão". Sob o título "O Grande Jogo", a matéria sobre a Copa começa na página 36 de "Time" e se estende por inacreditáveis 17 páginas, com direito a foto de abertura em página dupla, com dois meninos brasileiros trocando seus passes "cabeça" em pleno Morro da Babilônia. Ao fundo, o Pão de Açúcar e a Baía de Guanabara: um post-card tão conhecido que a foto nem precisou de legenda. "Time" trazia ainda um balanço das principais equipes que estavam na França e até mesmo a tabela dos jogos. Enfim, uma matéria mais que completa.

         Mas o destaque estava nas páginas centrais da revista, onde a esperada performance do time brasileiro brilhava sob o título de "Os Campeões". Para exemplificar a "febre" produzida pelo futebol no Brasil, "Time" abria a matéria com uma foto de quase meia página onde se via cinco religiosos brasileiros "batendo sua bolinha" na maior calma. Legenda: "Pelé, o maior jogador de futebol de todos os tempos, e agora Ministro dos Esportes no Brasil, denomina o futebol o mais belo dos jogos. No Brasil, ele jogam no ritmo do samba. E parece que ninguém é imune..." Na página ao lado, num grande boxe a cores, um perfil de Ronaldinho, com direito a uma bela foto de uma daquelas de suas arrancadas características. Título: "Como é sentir-se no topo do mundo?".

         Pois é, como é sentir-se no topo do mundo... e no outro dia, no limbo. Vamos continuar seguindo a Copa via "Time", pois pelo menos os americanos, já devidamente desclassifcados, estavam isentos de qualquer parti-pris. Em 20 de julho, a "Time" dava nova e derradeira capa para a Copa. Um sorridente Zidane segura a Taça – que, para meu espanto, tem um pedestal em verde-amarelo, vocês sabiam? – com a manchete logo abaixo: "No topo do Mundo". Exatamente como deveria Ronaldinho se sentir se... pois é...

         Dessa vez, é menor a matéria de "Time", apenas seis páginas, sob o título "Bravo, La France", assim mesmo, em francês, estampado sobre a foto da multidão bleu-blanc-rouge nos Champs-Elysées, o Arco do Triunfo ao fundo, totalmente tomado pela projeção da imensa foto do Roi Zidane. A matéria traz também um ótimo artigo, "Como foi para você?", ilustrado por um desenho de Taffarel defendendo o pênalti famoso, aquele. Assinada pelo excelente crítico e escritor inglês Julian Barnes – autor do hilário "O Papagaio de Flaubert" – a matéria trata de forma super bem-humorada as agruras de grande parte dos telespectadores de todo o mundo, obrigados a conviver durante um mês com jogos de futebol, futebol, futebol.

         Recebo hoje a "Time" desta semana, datada de 27 de julho. A capa é dedicada ao início da temporada norte-americana de beisebol. Pois é, parece que o mundo voltou ao normal, pelo menos pros yankees. A fome no Sudão come cinco páginas de "Time", ilustradas com as pungentes fotos de Paul Lowe, da Magnum. Aliás, as mesmíssimas imagens já estampadas pela "Veja" desta semana... o mundo globalizado é a mesma e redondíssima mesmice, que se repete ad nauseam, exatamente como na pergunta com que "Time" intitula sua matéria. "Sudão: Por que isto acontece de novo?". Pois é, por quê? Que pergunta mais safadinha, quando a gente sabe perfeitamente o porquê desse esquecimento. Ontem, era Biafra-Nordeste. Hoje, Nordeste-Sudão. Nada de novo sob o sol que esturrica e renega a vida. Fora o Nordeste, que é imbatível nessa Copa dos desfavorecidos.

         Ah, sim: na página 50, um Ronaldinho derrotado – mão na testa, cabeça baixa, olhar fixo sobre a grama – ilustra a matéria final sobre a batalha da França, a batalha das grandes marcas, segundo "Time". Subtítulo: "O colapso de Ronaldo horas antes da final da Copa reflete as novas pressões comerciais sobre os jogadores de futebol". Segundo "Time", a Adidas foi a grande vencedora da Copa de 98. E agora, Zagallo, faltam ainda quantas marcas? Ontem, dia 28, o jornal "O Dia" (que, aliás, melhorou consideravelmente, trazendo colaborações de cobras como Jaguar, Millôr, Aldir Blanc e muitos outros, inclusive minha querida Joyce, de volta ao jornalismo sem abandonar sua exemplar carreira de compositora), pois é, "O Dia" dava o Zagallo na capa, já destituído, a cores e sorridente. Titulo: "Tá rindo de quê?".

         Encartado na mesma edição d'O Dia, o suplemento "Ataque" estampava uma foto completamente diversa: um Zagallo com a cara fechada, a mão no queixo, o olhar distante. A legenda era formada por várias ofertas, como aquelas dos classificados: "Oferece-se: Técnico, Coordenador Técnico, Médico. CBF oferece vagas para preparador físico, auxiliar de preparação física, supervisor, treinador de goleiro, fisioterapeuta, roupeiro, massagista, administrador, cozinheiro, espião e psicólogo". Na página 7, sob o título "Final óbvio para o festival de besteiras", o jornal dava uma declaração do presidente da CBF, Ricardo Teixeira, ele mesmo, o rei da besteira, dizendo que as demissões significavam apenas "correção de rumo". Nunca vi nada tão incorreto e sem rumo.

Olé", nº 24, 01 a 15/08 de 1998


Ronaldo Werneck