O coração nas costas

Crônicas
         Nem bem salto do carro e ele surge assim de repente, como a pedir licença. Subimos a pequena trilha até a guarita, entre o esparso cantar de pássaros tardios e o azul que sobra das árvores. Entre as frestas, o sol nos olha de soslaio. Começo a caminhar como se corresse. À minha frente, vadio, ele corre como se caminhasse: lépido, ledo e baldio. Vamos mato adentro, mata afora. Súbito, em meio à capoeira, "Baldio" some num canto de trilha. Mas logo aparece e numa rápida carreira se enrosca em minhas pernas. E seguimos juntos, como se falássemos. Só agora percebo o coração. Ele surge branco e nítido em meio às camadas marrons que saltam do fundo mais preto de seu pêlo. A mancha branca forma um coração às avessas, tatuagem mais-que-perfeita: um coração nas costas.

         Baldio vaga a esmo a meu lado, distraído com um toco, um formigueiro, vários objetos do desejo farejados na manhã de inverno. Apresso o passo e aspiro o azul, a caminhada em meio. Ele surge de novo à minha frente, e num rápido movimento mancha de marrom o mato. Súbito, se adianta e some na primeira curva: para sempre. Volto no outro dia, e no outro, e no outro. Nunca mais o coração nas costas, debalde e baldio. Volto e volto e 1953 já vem de volta. Bolinha vem nítida na retina, o rabo branco abanando alegria. O olho vivo de vovó Cota, os cabelos centenários e brancos em bandós – muito branco e bandós, como Bolinha. No alto do portão, inalcançáveis, os miosótis borrifam de rosa o azul do céu-menino da rua Dr. Sobral. E de novo é agora e as duas se foram: só ficou a memória. Bolinha foi-se de velha, como vovó. E eu lá menino em acá/taguases: o coração nas costas.

         "Me chamo Tobi e gosto de biscoitos". Ele chegou assim, com essa coleira biscoital, e me apaixonei como só mesmo aos dez anos. Era um bassê muito do simpático e corríamos soltos e descalços rua do Pomba afora até a curva do Chico Rossi. E estacávamos, o coração tão à frente como o campo do Operal-campeão-local. Ele me guardava e latia que nem gente grande. Ninguém, ninguém ousava. Um dia, férias no Rio: Tobi ficou. Na volta, cadê Tobi? Fugiu, é o que se ouve. O que houve? Que água é essa a escorrer pelo rosto, a cair no coração (e vazar nas costas)? Outro dia, pelada lá pelos lados da Vila. Mas, quem vem lá? É Tobi. – Tobi! Ele corre pra mim e se abana todo, enquanto um sujeito mal-encarado (só podia!) solta um berro: "Pavão! Pra dentro, Pavão!". Pa-a-v-ã-o?? Pavão??? Não houve como. To be or not, Tobi se fue, pavoneando o rabo curto.Ficou o coração. Nas costas.

         Ulisses, que nem herói grego. Ulisses, que nem um "melro cantar" de Homero. Ulisses, que nem Joyce soubera chamar com tanto charme. Andava eu meio descasado num Rio sem muitos janeiros, o coração (é claro!) nas costas. Ulla, figlia mia, deixou-o sob minha guarda enquanto sumia – as férias em meio lá pelos matos de Mauá. Também ele gostava de biscoitos. Só que era um poodle, o pêlo cinza-encaracolado comme il faut. Gostava de biscoitos de noite e de noite-noite, noite com biscoitos e filme de caubói na tevê. Ulisses se amarrava num John Wayne. Era no tempo das diligências e varávamos a madrugada comendo e vendo, vendo-e-comendo. Se os brutos também amam, os filmes também terminam. Ulla voltou e papai aqui tava amarrado, que nem se amarra-cachorro. Ulisses foi-se numa manhã. Semana seguinte, Ulla liga chorando-de-morrer-de-Mauá. Ulisses foi-se. E também pra sempre: atropelado. Eu continuei só em Copacabana, descasado, sem mato nem cachorro: o coração (solto) nas costas.

24.08.2004


Ronaldo Werneck