Ronaldo é um poeta sem medo dos outros poetas. E faz uma apropriação dos textos que mais o emocionam, num processo criatvo de desafadora originalidade. Podemos lembrar Pound, mas Ronaldo não cita Rimbaud, Mallarmé, Valéry, Eliot e outros, cujos versos transcreve ipsis literis, nem os processa ao modo de palimpsestos, como simples resíduos de textos conhecidos. Ele trata esses textos como destroços futuantes de um grande poema-mar universal e único, que a eterni- dade progressivamente elabora, desfazendo contornos gráfcos e autorias.
A emoção que esses transcritos traduzem é a de Ronaldo. Mesmo porque esses textos não es- tão plotados nos poemas-fontes da mesma forma e com a mesma inter-relação de contgüidade e seqüência com que Ronaldo os re-edita em seu poema. Os rios correm para o mar, mas não fazem omar.
Voltando a Rimbaud, suas duas metáforas da eternidade – o mar mesclado ao sol e o mar que se vai com o sol – não correspondem a uma seqüência perceptva do fenômeno do poente. Na ver - dade, estas imagens iluminam textos diferentes, publicados com um ano de diferença. A primeira está em Une saison en enfer, de 1873, numa variante do poema “A Eternidade”, de 1872, que con- tém a imagem do mar que se vai. Na tradução sempre virtuosa e sensível de Ivo Barroso “A eterni- dade, é o mar que o sol invade” e “A eternidade é o mar que se evade com o sol da tarde”.
A “trouvaille” de Ronaldo é juntar essas duas imagens no espaço de um mesmo poema – o seu – como uma seqüência perceptva que acentua sua potência metafórica. Com esse achado, Ronal- do reitera o impacto do fenômeno natural do crepúsculo como referência da metáfora rimbaldia- na. A eternidade se mostra primeiro como a fusão do mar com o sol num lampejo de esplendor fu - gaz por natureza – o tempo que “fugit” em sua concentração máxima; e em seguida, como a anu- lação dos entes luminosos pelas trevas em que tudo desaparece, o fundo do poço do tempo.
Agora uma divagação que me ocorre à mente vadia. A paixão e a morte não estarão aí também representadas? O mar – la mer – não pode ser Julieta e o sol Romeu, sucessivamente arrebatados e fundidos pelos fogos da paixão e fnalmente anulados pela convergência das mortes entrelaça- das...
Agora só me falta contar uma vantagem, fazer “farol” como se diz em Cataguases.
Eu acho que testemunhei a gênese de Mar em mim, quando num telefonema fora do tempo e do espaço, um poeta ébrio como um barco desamarrado me gritava e repeta sua redescoberta e epifania: “Poeta, la mer melée au soleil, l’éternité”.
E eu cruelmente tentando fazê-lo pousar. Poeta, a eternidade é uma palavra muito curta para tanto arrebatamento.
Depois é que eu fquei sabendo que não mais atado pelos sirgadores o poeta estava se lançan- do no mar de seu poema, e nele docemente soçobrando.
Como, a partr de hoje todos aqui presentes estão convidados a naufragar.
FRANCISCO MARCELO CABRAL
Texto lido no lançamento do livro na Livraria da Travessa-Ipanema Rio de Janeiro, novembro de 1999