Minas em Mim

Fortuna Crítica

Por FRANCISCO MARCELO CABRAL

 

Eu rabisquei estas notas para não me dispersar.

De forma bem humorada fui tratado de guru do nosso poeta e é claro que não é nada disso. Ca- etanamente, sou um aprendiz de quem se diz meu aprendiz.

Na minha versão, guru se soletra: G de amigo,
U de compadre,
R de “é ruim hem!”

U de ‘pára com isso”.

Mas sou um leitor antgo e privilegiado do poeta Ronaldo Werneck, de quem sempre leio os ori- ginais, honra à qual agora se acrescenta a dedicatória deste livro que todos vão comprar hoje.

Na minha leitura, a marca mais nítda nos livros de Ronaldo é o fuir do tempo, o ir-se desmedi- do, e uma visão estroboscóbica do mundo e das pessoas. Selva Selvaggia foi construído como um flme. E das artes temporais não há nenhuma mais comprometda com o tempo que o cinema com sua fta rodando a 24 quadros por segundo, tempo de retenção das imagens na retna e condição essencial da ilusão do movimento.

Para os poemas de Selva Selvaggia que se sucedem como “takes”, o poeta propõe uma seqüên- cia de leitura, como uma espécie de roteiro. Em Pomba Poema, o tempo é “feuve impassible”, o rio que passa e não pára de passar, por onde desce o barco ébrio do poeta com uma câmera na mão. E os canhões de luz da memória e da emoção acendem os pequenos nichos e palcos nos quais a crônica da cidade e de sua gente é mostrada como num flme sem roteiro.

Para quem o observa da margem, a lâmina corrente do rio é a imagem concreta do tempo. O Rio Pomba estava lá desde antes dos primeiros fogos civilizatórios e vai estar lá quando não sobrar nem memória nossa. Por isso é o nexo, o fo de ligação entre tudo o que acontece nas suas mar- gens e, às vezes, em suas águas.

O Nino Rota dessa Rimini Cataguases do Ronaldo Werneck foi o Maestro Rogério Teixeira, cujos dobrados – ouve-se ainda – atravessavam os domingos e as ruas, povoando-os de desfles, festas e circos.

Em Minas em mim e o mar esse trem azul o tempo ronaldiano afnal se empoça na grande mas- sa mineral da eternidade. Não fui mais, apenas pulsa, sempre recomeçando seu movimento para- do. Asconfux.

E a quilha do poeta “éclate” e ele soçobra “en questo mare”.

Agora o poema se estlhaça e incorpora em sua inestrutura o caos e a incerteza quântca. E é oferecido à expectatva do leitor como o universo observável se oferece à ciência inconclusa dos astrônomos e fsicos.

A eternidade em Minas em Mim é uma revelação potenciada por Rimbaud em duas imagens que Ronaldo adota na língua original:

  1. O mar mesclado ao sol – quem nunca viu? – naquela superexposição de luz amarelo-ouro e

    púrpura que domina todo o olho, toda a mente – qual o céu, qual o mar? – o universo visível

    cristalizado em luz

  2. O mar que se vai com o sol em fuga – quem nunca viu? – o desligar de todas as luzes e cores,

    que torna inúteis o olho e a mente, o universo invisível cristalizado em sombra.

Ronaldo é um poeta sem medo dos outros poetas. E faz uma apropriação dos textos que mais o emocionam, num processo criatvo de desafadora originalidade. Podemos lembrar Pound, mas Ronaldo não cita Rimbaud, Mallarmé, Valéry, Eliot e outros, cujos versos transcreve ipsis literis, nem os processa ao modo de palimpsestos, como simples resíduos de textos conhecidos. Ele trata esses textos como destroços futuantes de um grande poema-mar universal e único, que a eterni- dade progressivamente elabora, desfazendo contornos gráfcos e autorias.

A emoção que esses transcritos traduzem é a de Ronaldo. Mesmo porque esses textos não es- tão plotados nos poemas-fontes da mesma forma e com a mesma inter-relação de contgüidade e seqüência com que Ronaldo os re-edita em seu poema. Os rios correm para o mar, mas não fazem omar.

Voltando a Rimbaud, suas duas metáforas da eternidade – o mar mesclado ao sol e o mar que se vai com o sol – não correspondem a uma seqüência perceptva do fenômeno do poente. Na ver - dade, estas imagens iluminam textos diferentes, publicados com um ano de diferença. A primeira está em Une saison en enfer, de 1873, numa variante do poema “A Eternidade”, de 1872, que con- tém a imagem do mar que se vai. Na tradução sempre virtuosa e sensível de Ivo Barroso “A eterni- dade, é o mar que o sol invade” e “A eternidade é o mar que se evade com o sol da tarde”.

A “trouvaille” de Ronaldo é juntar essas duas imagens no espaço de um mesmo poema – o seu – como uma seqüência perceptva que acentua sua potência metafórica. Com esse achado, Ronal- do reitera o impacto do fenômeno natural do crepúsculo como referência da metáfora rimbaldia- na. A eternidade se mostra primeiro como a fusão do mar com o sol num lampejo de esplendor fu - gaz por natureza – o tempo que “fugit” em sua concentração máxima; e em seguida, como a anu- lação dos entes luminosos pelas trevas em que tudo desaparece, o fundo do poço do tempo.

Agora uma divagação que me ocorre à mente vadia. A paixão e a morte não estarão aí também representadas? O mar – la mer – não pode ser Julieta e o sol Romeu, sucessivamente arrebatados e fundidos pelos fogos da paixão e fnalmente anulados pela convergência das mortes entrelaça- das...

Agora só me falta contar uma vantagem, fazer “farol” como se diz em Cataguases.

Eu acho que testemunhei a gênese de Mar em mim, quando num telefonema fora do tempo e do espaço, um poeta ébrio como um barco desamarrado me gritava e repeta sua redescoberta e epifania: “Poeta, la mer melée au soleil, l’éternité”.

E eu cruelmente tentando fazê-lo pousar. Poeta, a eternidade é uma palavra muito curta para tanto arrebatamento.

Depois é que eu fquei sabendo que não mais atado pelos sirgadores o poeta estava se lançan- do no mar de seu poema, e nele docemente soçobrando.

Como, a partr de hoje todos aqui presentes estão convidados a naufragar.



FRANCISCO MARCELO CABRAL

Texto lido no lançamento do livro na Livraria da Travessa-Ipanema Rio de Janeiro, novembro de 1999

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Ronaldo Werneck