Seberg - Godard (le cinéma)

Textos Críticos - Cinema

Três vezes Godard na Libreria del Cinema, ainda em Roma/Trastevere: Questa è la mia vita (“Vivre sa vie”) e Je vous salue Marie, anunciado na contracapa, naquele hiperbólico registro italiano, como “un film scandalo: dal regista provocatore di Fino all´ultimo respiro. L´Immacolata Concezione nella visione di Godard”. Por Fino all´ultimo respiro, leia-se A bout de souffle, o “Acossado” (1960) que apresentou ao mundo do cinema o “Jean-Luc Godard diretor”, conhecido até então só por seus artigos críticos no Cahiers du Cinéma. E que veio também comigo em sua versão ítalo-francesa – este film scandalo, este “filme-de-cinema” de que eu tanto gosto e que vi pela primeira vez no antigo cineminha “de arte” que havia no terraço da Mesbla-Rio, na Cinelândia do início da década de 1960. “Nouvelle Vague” a toda prova, expressão logo consagrada após seu “batismo” em famoso artigo de Françoise Giroud para o L´Express.

“Fazer um filme supõe três operações”, diz Godard. “Pensar, filmar, montar”. Ça veut dire, em bom português: é preciso ar, três vezes “ar”. Ou cinco: respirAr em meio ao sufocAr daquele A bout de souffle visto-revisto depois, ainda nos anos 60, no também carioca e mitológico Cine-Paissandu, e muitas e muitas vezes vida afora. É Godard, é claro. Mas também o “objeto” Jean-Paul Belmondo. E François Truffaut, co-roteirista. E Raoul Coutard, na câmera. Mas é ainda, e principalmente, Jean Seberg – a atriz consagrada pelo Cahiers na virada dos anos 50 como a “nova divindade do cinema”, após seus dois filmes sob a direção de Otto Preminger, “Bom-dia, tristeza” e “Santa Joana”.

Ah, a magia daquela nuca e sua suave penugem, lua, lua minguante, nua nuca desvelada pela dobra-cetim de cabelins curtos-curtins! Acossados na sala escura ficamos nós com a luminosidade daquela adorável vendedora do New York Herald Tribune flanando pelas ruas de Paris. A jovem americana (Marshalltown, Iowa, 1938) que terminara há pouco seus dois primeiros filmes, inclusive “Santa Joana”. Para ganhar o papel-titulo, Seberg concorrera com nada menos que dezoito mil candidatas. E não houve ninguém que rivalizasse com seu carisma, nem mesmo Santa Joana, imagina! Logo depois, Jean radicou-se na França, onde viveu daí em diante. Ela e o charme de seus cabelos curtinhos, que marcaram época e deixaram eternamente enamorados cinéfilos basbaques como este que aqui os rememora – curtos cabelos assim deixados, e por bom período mantidos, após sua total tosa para “interpretar” a careca de Joana D´Arc.

Então, e num rapidíssimo flashback, imaginem vocês o susto que levei ao ler a manchete da morte de Jean num jornal de Argel, onde me encontrava em setembro de 1979. O fato merecia grande destaque, mesmo porque Seberg estava casada na ocasião como o ator argelino Ashmed Hams. “Ela pode ter morrido por uma superdose de barbitúricos”, dizia a notícia, pois a polícia encontrara barbitúricos em seu carro, onde o corpo da atriz foi achado, próximo à sua casa, no “elegante distrito 15 de Paris”.

Ela completaria 41 anos cerca de um mês depois, em 13 de novembro. Seberg fora casada com o (grande) romancista e cineasta (menor) Roman Gary (francês, de origem russa: Vilnius, 1940; Paris, 1980), que iria se suicidar cerca de um ano após sua morte. Jean era também autora de Blue Jean (que título mais sacado!), um livro de ensaio sobre a esquizofrenia, e de How top Escape Oneself, um manual com instruções para o suicídio. Poucos anos antes, Jean Seberg tentara também se matar ao atirar-se sobre os trilhos do metrô parisiense. Salva, passou longo período em clínicas especializadas em doenças nervosas. Sua morte, até hoje não muito esclarecida, foi um choque para quem tanto amava aqueles cabelos, aquela nuca, aquele olhar, aquela voz que ouço ainda agora a gritar Champs-Élysées afora: New York Herald Tribune! New York Herald Tribune!

Vi também numa das gôndolas da livraria o Godard (le cinéma), de François Nemer (Gallimard, 2006), lançamento recentíssimo, que eu comprara em Paris e estava lendo. O livro de Nemer foi realizado especialmente para a exposição “Voyage(s) en utopie, Jean-Luc Godard, 1946-2006”, que ocupou o Centre Pompidou de 26 de abril a 14 de agosto do ano passado. “Quantos Godard(s) existem?”, nos questiona a chamada da contracapa. “Aquele da Nouvelle Vague e dos anos 1960, o Godard “culto” de A bout de souffle e de Pierrot le fou? Aquele que deu a Belmondo e a Bardot os mais belos papéis de suas vidas? O de Le Mépris, que os anti-Godard incensam para rejeitar o resto? Ou o militante maoísta de pós-68, aquele que fingira abandonar o cinema? Ou aquele que víamos a partir dos anos 1980 na televisão ou em Cannes, paradoxal e provocador? Ou ainda o autor de Prénom Carmen, Je vous salue Marie, Passion, Nouvelle Vague, e as monumentais Histoire(s) du Cinéma: filmes “cabeça”, muitas vezes mal-amados, onde a beleza fulgurante surge das reflexões as mais profundas?”.

Jean-Paul Belmondo (“Michel”) vira-se para o espectador: “Se você não ama o campo, se não ama o mar, se não ama a montanha, se não ama a cidade... então, vá se danar!” Jean Seberg (“Patricia”) a “Michel”: “Não sei se sou infeliz porque não sou livre, ou se não sou livre porque sou infeliz”. “Michel” retruca: “Ai, ai, ai, que eu gosto de uma garota que tem uma linda nuca, lindos seios, linda voz, lindos pulsos, cara linda, lindos joelhos, mas que é liiiiivre! Dane-se o campo, eu não quero mais te ver... Dane-se o campo, sua nojenta!”. Esse “nojenta” é tradução minha para dégueulasse, palavra-recorrente do personagem de Belmondo. Na cena final, “Patricia”, americana de fraco francês, ouve “Michel” – baleado numa rua de Paris – murmurar agonizante em seu colo: “Tu es une dégueulasse” – e ela, que o havia “dedurado”, o vê passar o dedo sobre os lábios, com seu tique favorito à la Bogart. Um policial diz a “Patricia”: Ele falou que você é uma dégueulasse. E “Patricia”, para o espectador, levando o dedo à boca, no mesmo tique: “O que é isso, dégueulasse?”. A câmera se afasta num lento zoom, ouve-se ao fundo o cool-jazz de Miles Davis, que se esvai num fade enquanto a tela escurece. Por que isso? Porque, segundo Godard, um film noir deve assim terminar. “Meu filme”, ele diz sobre A bout de souffle, “é um documentário em torno de Jean Seberg e Jean-Paul Belmondo”.

Somos nós de novo os “acossados” ante transgressões tão grandes na sintaxe cinematográfica. Um Godard de efeitos exuberantes conseguidos com um fazer pleno de simplicidade, e por isso mesmo magnífico – como naquelas “tomadas de rua” de Belmondo-Seberg a andar pelos Champs-Élysées, que ele consegue realizar empurrando o grande fotógrafo Raoul Coutard sentado com a câmera na mão numa cadeira-de-rodas. Um travelling gravado para sempre, mais instigante mesmo que o de Week End (1967), que é até hoje considerado o mais longo travelling da história do cinema. “Nós filmamos com a câmera na mão para andar mais rápido. Três quartos dos realizadores perdem quatro horas de seu tempo com um plano que não exige mais que cinco minutos de trabalho. Eu prefiro que a equipe tenha cinco minutos de trabalho, e que eu possa me reservar três horas para refletir”.


RW - 15.04.2007


Ronaldo Werneck