Modestamente!

Textos Críticos - Cinema

Na guerra e no pós-guerra, a Itália era o país da bicicleta (e, na pobreza, dos “ladrões de” – vide o filme de Vittorio de Sica). Logo depois, o império da motorina, das lambretas. E logo-logo da febre dos automóveis, da macchina, orgulho e glória de onze entre dez italianos em louca disparada, ultrapassagens controvertidas e desenfreada buzinação asfalto afora. Este o ritmo, o acelerar de Il Sorpasso/Aquele que sabe viver, de Dino Risi – filme que adoro, mas que não vou contar. Quem viu, volte a ver correndo (e com todas as “ultrapassagens” possíveis). Quem não viu, corra logo: o dvd é encontrável nas chamadas boas casas do ramo. Só três lances rápidos, relembranças que valem por fragmentos emblemáticos de Il Sorpasso (pode também ser chamado de “A ultrapassagem”).

Primeiro, o personagem Bruno/Vittorio Gassman – como sempre incorretíssimo – “desconstruindo” a inocência da infância de Roberto/Jean-Louis Trintignant, na seqüência da visita a seus tios. Bruno acaba transando com a tia de Roberto, o fetiche de sua infância. Mais: insinua que sua outra tia traía o marido e que o filho deles era na verdade filho do capataz. Mais ainda: logo que chegam à propriedade, são atendidos por “Occhio Fino”, o mordomo todo “adamado”. Só Roberto parece não ter percebido durante toda a sua vida. Bruno: “Mas, como? Ele não engana ninguém. Você não percebe que “Occhio Fino” é “Finocchio” (gay) ao contrário?”. Na (perfeita) versão brasileira, o jogo de palavras resultou em “Chiba-Bicha”. Segundo lance, a cantada de Gassman em Lili/Catherine Spaak, quando ele a persegue, ela de costas a andar por uma praia. Quando ela se vira, ele vê que é sua filha. “Claro que foi brincadeira, imagina!”.

Terceiro, a famosa cena da dança “engoma-cueca” com Gassman e a mulher do Comendador, a coleante Gianna/Luciana Angiolillo. Tudo na presença do próprio Comendador, que está numa mesa a contar piadas de adultério para os convidados. Lá pelas tantas, após o endiabrado “torcer de um twist” (ele dá literalmente uma “bundada” em um dos dançarinos, um chega-pra-lá enquanto exclama: “pô!, eu estou criando”), a música ralenta e Gassman quase que se debruça sobre sua partner, fincando o queixo em seu ombro, no ardor do “é-pau-é-pedra”. Ela sussurra em seu ouvido: “U-lá-lá!!!”. É quando, afastando-se ligeiramente, Gassman diz num semi-sorriso safado: “Modestamente! Modestamente, Signora!”.

Isso sem falar nos estropiados e absolutamente desabonadores comentários sobre Federico García Lorca (“aquele poeta da Casada Infiel. Sabe, Roberto, aquele “meio assim-assim”?) e Michelangelo Antonionni. “Muito bom, esse tal de O Eclipse. Dormi o filme todo. Ótimo diretor, esse Antonionni”. Revendo o filme agora, fica também aquele cena onde o rapaz, já meio fascinado pelo modo de vida do personagem de Gassman, vira-se e diz terem sido aqueles dois dias os melhores de sua vida. E Gassman (sorrindo): Que importam as tristezas? Sabe qual a idade mais bela? É aquela que cada um tem, no dia-a-dia”. O próprio carpe diem.

Passo agora a palavra ao próprio Dino Risi. Ninguém melhor do que ele para falar de seu belo filme, como nesses fragmentos que traduzi de um antigo depoimento de Risi sobre como surgiu Il Sorpasso.

“O personagem de Il Sorpasso nasceu numa viagem que fiz com um advogado milanês meio maluco, que um dia me levou de Milão a Varese para procurar a irmã, depois a Lugano para comprar cigarros, e depois me perguntou de chofre: “Você já esteve em Lichtenstein?”. E me levou para comer com o Príncipe de Lichtenstein, em cujo castelo conseguimos entrar mostrando a carteira de sócios do time do Milão, fazendo-nos passar por jornalistas. Assim, pensei em contar uma história parecida, que se completou quando fiz uma viagem de Roma a Maratea, em busca da locação adequada para as externas de A porte chiuse, um filme com Anita Ekberg.

“O produtor com quem viajava, outro maluco completo, era apaixonado pelo time do Roma a ponto de ter dado um chute no rádio quando, no trajeto, o seu time sofreu um gol. Tivemos que procurar um posto de gasolina, para saber o final da partida. Mas precisamos também de mudar de restaurante pois, num deles, o garçom suava nas mãos; no segundo, era a garçonete que fedia; e no terceiro, nós comemos pessimamente. Assim, chegamos a Maratea às três da madrugada, não encontramos sequer um hotel aberto – e acabamos dormindo no carro.

“Esse foi o segundo qüiproquó resultante de uma aventura automobilística, que me serviu como primeiro tratamento para o roteiro de Il Sorpasso: a história de uma bela amizade entre dois homens, que assustou o produtor Mario Cecchi Gori. Ele me disse, esperançoso: ´Se chover amanhã, terminamos o filme com os dois correndo ao longo da estrada e um final feliz´. Mas no outro dia não choveu – e filmamos o acidente com o qual eu queria que o filme terminasse. Estranhamente, esse final trágico conquistou o público, que sentiu o perigo que se esconde na vida daqueles que são felizes, mas pressentem o surgimento de alguma coisa de terrível. Isso foi tão bem compreendido que o filme alcançou sucesso em todo o mundo.

“Meu grande amigo nessa história cinematográfica foi Vittorio Gassman, com quem fiz dezesseis filmes. Il Sorpassso, por exemplo, começou muito mal, pois me recordo que no Cine Corso, onde foi feita a pré-estréia, havia ainda cartazes de um filme de Rossellini com Gassman, Anima nera, que ficou somente dois dias em exibição e depois foi retirado. Quem passava em frente ao cinema e via a cara de Gassman escapava de imediato, pois Gassman estava em um período em que era rejeitado pelo público. Para atuar no grande sucesso que foi I soliti ignoti (Os Eternos Desconhecidos, 1958), de Monicelli, quase mudaram todas as suas características, colocando algodão nas bochechas e abaixando sua fronte, dando-lhe praticamente uma cara de clown. Eu tive a coragem de usar Vittorio como era na vida, isto é, muito simpático, belo mesmo.

“De início, pensara em Sordi (Alberto Sordi, Roma, 1920-2003). Mas, quando falei com ele, Sordi me disse que temia se entregar totalmente ao papel e, no final, o mérito ir todo para o co-protagonista. Aconteceu também que, como Cecchi Gori devia fazer um filme com Gassman, tentamos nos aventurar com esse ator, embora não fosse um queridinho do público. O filme começou com cinqüenta pessoas na sala de exibição. Na noite seguinte, não eram mais que duzentas. Na terceira noite, era o jipe da polícia que mandava as pessoas de volta. A crítica só se tocou quando o filme caiu no agrado dos franceses, em particular da Revista Positif, que lançou a commedia all´italiana na França. Na Itália, esse gênero tinha alguma coisa de ´sucesso malvisto, recorrente´. Súbito, passou-se a falar da commedia all´italiana não mais com desprezo, mas com uma certa atenção – e começou a belíssima temporada que fez o sucesso de filmes extraordinários como Divorzio all´italiana, de Pietro Germi, e de tantos filmes de Pietrangeli, Monicelli, Comencini e até mesmo os meus”.

Modestamente, meu caro Dino Risi! Chiaro que mui modestamente.


RW - 09.03.2008


Ronaldo Werneck