Ilhado na província mineira, sem qualquer know-how, improvisando tudo e todos, transformando em atores os membros da família, os amigos, os habitantes da cidade, Humberto Mauro fez em Cataguases os melhores filmes da primeira fase do cinema brasileiro.
A verdade é que Mauro tinha idéias um tanto mandrakes. Inclusive, fascínio da coisa nova, já havia idealizado um projeto meio “shangri-lá”: ver planadores deslizando nos céus de Cataguases. De Santos Dumont a Lumière, convenhamos, existe somente um modo mais novo de enquadrar o sonho. Um colocar de câmera sobre a realidade: vôos mais baixos, mais próximos da lucidez. A terra e o homem, o contraste de nossa paisagem rural.
Ao fundar (unido ao fotógrafo Pedro Comello e aos comerciantes Agenor de Barros e Homero Cortes) a Phebo Sul América Film (depois Phebo Brasil Filme), Mauro inaugura a verdadeira e mais autêntica indústria de Cataguases. Queiram ou não queiram aqueles que só conseguem ver através da lente desfocada da “estória”. A indústria de cinema em Cataguases é “história”, tem as características de um processo histórico. O resto é blá-blá-blá, é a cidade não acreditando em Mauro como, até hoje, não acredita em Paulo Martins & equipe (“uns malucos, isso sim!”).
Só a partir do Festival de Cataguases, em 1961, é que foi feita uma re/visão na obra de HM. Glauber Rocha sai entusiasmado do Cine-Teatro Cataguases: “Cremos que no momento a política mais eficiente é estudar Mauro e neste processo repensar o cinema brasileiro, não em fórmulas de indústria, mas em termos do filme como expressão do homem”.
O cinema de HM se integra com a terra, canta a paisagem rural em termos de Brasil, é puro, instintivo, despojado. Sua câmera está sempre voltada para a realidade. E como narrar o cotidiano de uma fazenda sem conotações sociais?
Um filme não é arquitetura de efeitos, mas expressão visual de problemas. Lembremos o Godard de Le petit soldat: “La photographie c´est la vérité — et le cinéma c´est la vérité vingt-quatre fois par seconde” (1). Fugindo aos esquemas pré-fabricados, ao cinema cor-de-rosa made in Hollywood, a tendência de Mauro foi romper com as produções caríssimas e sem sentido e – visionariamente – antever a estrutura das produções independentes de hoje.
Ao praticar, sem o mínimo background, uma arte muito mais inovadora em fundo & forma, buscando uma linguagem nova, relâmpago, fugindo das ridículas veredas do discurso e das metáforas “enfeitadinhas”, Mauro, sem o saber, estava sacudindo os alicerces da arte blasée praticada no país antes da década de vinte. Principalmente, fabricando uma linguagem capaz de renovar a velha e obsoleta cultura de então, de – nas verdes cercanias – provocar, também ele, “um gostosíssimo escândalo interior e até vaias íntimas” (2). No panorama da renovação de nossa intelligentsia, situa-se ombro a ombro com Oswald de Andrade e seus poemas-minuto, que nada mais eram do que takes cinematográficos sem a valorização de uma montagem dialética. Ao implantar – ator, autor, arauto – uma arte de vanguarda, Humberto Mauro, intuitivamente, abriu a imensa faixa para o diálogo com a realidade brasileira.
1. A frase correta de Godard é: “La photographie c´est la vérité. Et le cinéma, c´est vingt quatre fois la vérité par seconde”. Et voilà!
2. Frase que remete ao Manifesto da revista Verde, Cataguases, 1927.
Ronaldo Werneck
in Jornal “Cataguases”
7 setembro de 1977