Para quem viu, ou principalmente para quem não viu o show Os Doces Bárbaros, o filme homônimo é uma agradável revelação. Palavra mágica, como mágica, aliás, é não só a performance de Gil & Caetano & Gal, como em particular a montagem do filme de Jom Tob Azulay.
Mágicos, uns & outros, baianos & filme, porque jogando com conceitos que extrapolam a dicotomia significante/significado. Mágicos, uns & outros, porque projetam paradigmas sobre sintagmas, ícones sobre símbolos, códigos não-verbais sobre o código verbal, assumindo a verdadeira função poética, como queria Jakobson. E assim fazendo roçam os campos do acaso, onde se situa a aura poética, de Mallarmé a Pound & outros menos votados: um lance de dados significáveis, extra-significado.
Mas, deixemos esses macetes comunicalóides e vamos aos fatos. Para o show, contribuíram os baianos – inventiva, garra, sensibilidade, não importa: é um jogo de seu (deles) métier. Para o filme, supostamente, o acaso: uma série de ocorrências extra-show, que enriqueceram o contéudo filmíco. É isso e não é isso. O acaso contribuiu na medida em que os baianos são imprevisíveis; na qualidade de verdadeiros artistas, trabalham como artesãos da inventividade, principalmente Gil e Caetano.
E, ainda, por fatores exógenos (prisão de Gil em Florianópolis, as inusitadas palavras de Bethânia durante a entrevista), tornando uma mera filmagem seqüencial de um show (leia-se documentário, leitura fria, horizontal, exposição de ocorrências etc.) num momento vivo, numa explosão de significáveis. Isto é, abertura de significados, fusão do irreal/real, como na canção-título: “tudo ainda é tal e qual/no entanto nada igual”.
Caotizar o caos
O filme vive na fronteira entre o acontecimento e a ficção, entre o episódico e o supra-real, entre o show do palco e o show de nonsense das entrevistas e da ocorrência policial em Florianópolis. Na boca do policial, o som direto de palavras como barato, fumo, ou aí eu segurei a porta do quarto do Caetano com o pé: sacumé!, macete de polícia..., atuam como componentes de irresistível humor, apesar da dolorida realidade dos fatos por trás disso tudo.
Um dos planos dessa seqüência marca perfeitamente o tom que emerge das entrelinhas (melhor, dos entrefotogramas) de todo o filme. É quando o promotor procura separar o homem do artista, Dr. Jekyl de Mr. Hyde, o supostamente maconheiro Gilberto não-sei-das-contas Gil do compositor Gilberto Gil, “uma das mais altas expressões da música popular brasileira, um dos mais lídimos representantes de nossa Arte”... breque. Vira-se para o escrevente, e soletra pausadamente: “lídimos, eu disse lí-di-mos”.
Nessa hora, a câmera pega Gil em close: a roupa exótica, agressivos lacinhos no cabelo pixaim, ele me sai com uma declaração na medida, completamente sem sentido dentro do contexto: “Vejam vocês, tenho 34 anos, cinco filhos, com informação sobre o bem e o mal”. A seqüência é a mostra mais significativa de todo o filme, porque é onde está melhor espelhada a defasagem entre os dois mundos: o homem da lei, preocupado com a exatidão vernacular, cacos de brilhareco perdidos em meio ao mofo legislativo; o artista, buscando ordenar o caos, um maniqueu deslocado, quando no palco sua função (cumprida comme il faut) é precisamente às avessas – caotizar o caos, utilizando-se do repertório mais deslavadamente tropical: “com a espada de Ogum/ a bênção de Olorum/ o raio de Iansã/ rasgamos a manhã/ vermelha/ alto astral/ altas transas/ lindas canções/ afoxés/ astronaves/ aves/cordões”.
Rever para aprender
Assim, o que de início seria apenas mais um documentário sobre um show gênero Woodstock & Cia acabou virando “um filme-de-cinema”, e de grande qualidade. Verdade que o acaso proporcionou o episódio de Florianópolis, que imprimiu maior ritmo, dando-lhe, até, ares de thriller. Mas só isso não basta. Gimme Shelter, por exemplo, já registrara a realidade de um assassinato ao vivo cometido pelos Hell´s Angels em meio às pedradas de decibéis dos Rolling Stones & Cia: nem por isso fugiu ao ramerrão dos concertos de rock.
Mesmo sem a prisão de Gil, o filme Os Doces Bárbaros resistiria. E acabaria sendo, como é, bem superior à média do que se vem fazendo em cinema no Brasil, englobando aqui, inclusive, as trêmulas fantasias (mal) sacadas de obras literárias. Parece que não tem nada a ver. Mas só tem. Azulay conseguiu fazer um filme honesto, milagrosamente com um mínimo de efeitos, uma montagem correta e principalmente inventiva, dando uma estrutura dinâmica às seqüências, realizadas com tomadas de câmera sem resquícios de frescura. Naturalmente, era rico o material, revelando-se os baianos (e não era para menos) bem melhores do que a maioria dos fracos atores que infestam e derrubam filmes nacionais que poderiam, até, ser aproveitáveis.
Engraçado que de toda a enxurrada de filmes brasileiros que inunda o mercado, inclusive e principalmente os dos diretores do chamado cinema novo, o que sobra são os documentários. Prova da penúria e implausibilidade dos roteiros dos filmes de ficção, da falta de continuidade, da ausência de direção de atores, das edições deploráveis. Na verdade, e acreditem que digo isso com pesar, o cinema brasileiro está coalhado de “gênios”, que procuram inventar sem o mínimo conhecimento de causa ou da coisa.
Nada se faz sem aprendizado. A turma do cinema novo é muito bem-falante, teoriza a mil, mas na hora de mostrar trabalho a vaca vai pro brejo. Falo do cinema novo porque, francamente, o resto é uma só pornomiséria: melhor deixar como está, não existindo. O poeta Mário Faustino dizia uma máxima que deveria servir como lema a muita gente: “Rever para aprender/Aprender para renovar”. Mas falta humildade aos “gênios” nacionais, e o negócio acaba dando no que dá: qualquer produção média americana, qualquer filmeco classe B, idéias à parte, ganha de longe, em termos artesanais, de construção fílmica, das câmeras-na-mão, da falta de idéias e do treme-treme das baboseiras nacionais. E não é falta de dinheiro, não. É mesmo falta de humildade para aprender, para não dizer falta de vergonha.
Aprender para renovar
Pois bem. Dos filmes nacionais que vi nos últimos tempos, sobram os documentários de Vladimir Carvalho, que vem traçando instigante trajetória dentro da medíocre pomposidade da produção brasileira. Vladimir é dos nossos melhores documentaristas, além de autor de um belíssimo e contundente longa-metragem – O País de São Saruê – ainda preso pela intransigência da censura. Ele vem fazendo um levantamento da arte & vida do Norte/Nordeste que só pode ser comparado ao meticuloso trabalho que mestre Humberto Mauro realizou para o extinto INCE. Ah, sim: tem o Di do Glauber Rocha. Mas aqui é outro papo. Glauber é gênio mesmo, sem aspas, com ou sem montagem atômica, no fundo mais uma blague do enfant terrible dos sertões de Vitória da Conquista.
Sem realizar cortes “geniais”, fazendo um trabalho correto, procurando através de uma montagem inteligente dar uma linguagem fílmica ao show, encadeando este ao acontecimento, mas sem interromper o discurso dos baianos, Azulay fez um filme no mínimo aturdente. Considero Doces Bárbaros (para possível espanto & execração das fanzocas) superior mesmo ao One Plus One, que Godard realizou com os Rolling Stones, nos bons tempos em que ainda havia Godard e a efervescência dos anos 60. Talvez porque, de certa forma, os baianos, como os “quatro cavaleiros do após-calipso” de uma de suas músicas, resistiram à década de 60, cotinuando uma trajetória de grande inventividade e inquietação.
Carisma & talento
O diabinho Gilberto Gil, o moleque-motor da turminha. A colocação exata da voz e a grande sensualidade das coxas tropicais de Gal Costa, contrapondo-se aos recatados joelhos-bossanova de Nara Leão. Um Caetano andrógino & carismático, imprevisível, empático, bem-falante: “impávido que nem Mohammed-Ali/apaixonadamente como Peri/tranqüilo e infalível como Bruce Lee”. E Maria Bethânia, funcionando como pêndulo da coisa toda, a explosão joco-séria de sua entrevista, dada a um repórter absolutamente ingênuo (da Revista Amiga?): “sabe, esse negócio de feminismo, tropicalismo, esse negócio de movimento, qualquer movimento, me lembra muito o Avante!, sabe?, aquele caderno de escola que tem um menino com uma bandeira escrito Avante! Pois é, ser viado, ou não, ser isso ou aquilo, que importância tem? Estou me lixando para isso tudo...”.
A verdade é que os baianos continuam a trilhar uma vereda, no mínimo instigante. Apesar de alguns desatinos, de algumas posições meio fajutas (as últimas criações de Caetano, Tigresa fora, a guinada Black Rio de Gil), quando eles acertam é uma barra: sai de baixo, malandro, que a ópera é outra. O tropicalismo revitalizou o marasmo em que andava a Arte Brasileira por volta dos sessenta, abrindo vários & profícuos segmentos além de inevitáveis kitsch (Fagner, Seixas, Belchior, Ednardo & Cia). Se hoje eles não têm o mesmo élan, paciência. Ainda existe o carisma e doses de talento escapando de suas vozes, em níveis bem mais eficientes do que a média dos mass idem da chamada MPB.
Nessa medida, o filme Os Doces Bárbaros funciona como marcação do acontecimento: a montagem permite o comentário musical da realidade. Ou, às avessas: a realidade como contraponto das musicas/take do show. Exatamente assim: Apenas vozes/Após/Apenas/Nós por exemplo/Ecos imprecisos/Do que for preciso.
Ronaldo Werneck
Minas Gerais/Suplemento Literário
n.º 634 / Belo Horizonte, 25 nov. 1978