Vai-se a primeira pomba despertada...
Vai-se outra mais... mais outra... enfim dezenas
De pombas vão-se dos pombais, apenas
Raia sanguínea e fresca a madrugada
É dia claro quando chego ao hotel na Paraíba. Venho da Cidade do Cinema montada na Usina Cultural Saelpa, de João Pessoa. Mais uma noite em (preto e) branco a digitar e editar textos para o jornal eletrônico do Festival de Cinema de Países de Língua Portuguesa, o “Cineport na Tela”. Nove e meia da matina e caio na cama, exausto de lutar com palavras noite aforadentro.
Ligo a tevê só pra ver. Pra ver se durmo. Mas minha atenção é despertada por um documentário finlandês num canal a cabo, “3 Quartos de Melancolia”, realizado em 2004 por Pirjo Honkasalo (Helsinque, 1947), responsável pela direção, câmera e edição do filme. Tomo de meu noteboook e anoto com minha caneta Cineport.
Aqui pra nós, o notebook é um caderno sem pauta (por isso sempre desafino) comprado ano passado em Veneza. Tá escrito na capa Notebook, e alguém duvida? Depois, a textura do papel é uma beleza. A Cine/pen/port corre macia por meu Note. E anoto o que se segue em meu Book, que fica assim mesmo como se segue, pois assim saiu e assim segue. Pois.
Um mundo de silêncio e perplexidade. As seqüelas da guerra da Chechênia vistas pelos pequenos grandes olhos de meninos russos na Academia Militar de Kronstadt. Parecem atores-personagens, tal a força dramática dessa pequena gente de carne e osso e amargura. As panorâmicas, a madrugada sanguínea (palavra certa) e fresca sobre as montanhas – tudo lembra pombas e céu escarlate e Raimundo Correa:
E à tarde, quando a rígida nortada
Sopra, aos pombais de novo elas, serenas,
Ruflando as asas, sacudindo as penas,
Voltam todas em bando e em revoada...
O cavalo na bruma. Os silêncios. Os travellings verticais belíssimos. Construir um filme. Câmera fechada sobre o silêncio. Sobre o pequeno Aslam, 11 anos, o menino estuprado pelos soldados russos. Close em Adam, 12 anos, que perdeu o pai. Em Milana, 19 anos, estuprada aos 13. Câmera ainda em close sobre Milana, agora abraçada à irmã Kiki, de uns dois anos. Silêncio constrangedor. Milana começa a rezar: “Salva-me da vergonha, meu Deus, bendiga todos os órfãos, ouça minha prece, salva-me da vergonha!”.
Também dos corações onde abotoam,
Os sonhos, um por um, céleres voam,
Como voam as pombas dos pombais
A câmera em close sobre os dedos dos meninos. Dos pés, das mãos, desses dedos de crianças que se espreguiçam num acordar para o nada. Choro matinal. Um galo canta ao longe. Um jato risca o céu vermelho. Ao ouvir o barulho, os “olhos estuprados” de Aslam são puro estupor, puro medo e apreensão. Silêncio.
Tudo no mais perfeito silêncio, que escorre em contrapono às notas de rara pungência da música-tema. A banda sonora corretíssima como elemento de tensão. Pastores e cabras. Câmera passeia em lenta panorâmica sobre montanhas e vales, agora azulados pela semi-claridade, e vai ao encontro de pastores.
No azul da adolescência as asas soltam,
Fogem... Mas aos pombais as pombas voltam,
E eles aos corações não voltam mais...
Exausto, fecho os olhos. Mas custo a dormir, vigiado por olhares infantis que vagam sobre o nada – e mesmo assim me questionam.
RW - 01.07.2007