Lançado há quase trinta anos - o livro é de 1967 e a Editora do Autor, na verdade do Rubem Braga e do Fernando Sabino, nem existe mais -, A Janela já confirmava, na época, a escrita de fina estampa, o texto culto, irônico e elegante de Francisco Inácio Peixoto. Nem poderia ser de outra forma. Chico Peixoto foi um homem gentil, elegante, culto, e por isso mesmo mordaz: um cavalheiro de fina estampa meio que deslocado na fantasmagórica cidade de seu interior - uma Cataguases sempre de outrora que se julgava de agora. Mas, no fundo, uma província irremediavelmente de outrora. Como agora.
São seis histórias, “poucas e curtas”, como ele mesmo diz em sua apresentação, por si só um texto pleno de ironia, que de certa forma nos remete ao Machado de Assis de Brás Cubas: “No caso, houve só a necessidade, quase física, de livrar-se de coisas que andavam desconchavadas e, assim, tornavam-se incômodas. Dá-se-lhes com isso mortalha, e cova única”. Dessas, só A Janela, que dava título ao volume, era inédita na época.
Não vou falar aqui sobre Bapo, que fecha o livro, pois o Francisco Marcelo Cabral me disse estar escrevendo exatamente sobre ele, “o peixinho de cauda em véu ondulante”. Então, deixo pro Chico Cabral comentar o poder de síntese dessa história onde a morte é tratada de forma extremamente banal. O menino, Bapo e - ploc! - a descida para o fundo do tanque, para a morte, “lentamente, lentamente, como um esquifezinho”.
Dois dos outros cinco textos nos levam para os ilimites do fantástico. Na verdade, tanto A Janela quanto Chiquitá enquadram-se perfeitamente na literatura gótica, daí nos lembrarem, e muito, aquele tipo de conto em que Hoffmann era mestre. Sombra e luz que escapa pelas frinchas da janela, iluminando (“um bico de gás”) de forma tênue o ambiente: “a luz veio azul e mortiça”. Os móveis, “esbatidos na escuridão”, evocam os fantasmas envoltos em penumbra e maus presságios: “Senti que a noite acabara de cair, súbita, violenta e espessa”.
Ao visitar uma estranha cliente - num Rio de Janeiro tomado por bondes e trotes ingênuos, possivelmente antes dos meados do século -, o jovem Dr. Sófocles, “com curso de direito feito cômoda e desonestamente na Rua do Catete”, percebe que “estava preso num cubo de luz” e passa por estranha aventura numa casa “enodoada de manchas escuras” na velha e, na época, ainda aristocrática Rua Paissandu. A linguagem de A Janela é um perfeito somatório de jargão jurídico e palavras pomposas que habitam o quase sempre estreito mundo dos jovens formandos.
O Dr. Sófocles não era de economizar repertório, por isso mesmo tome de peremptória, regougava, deliqüescência, chancas, cabal, arrazoado, engrolar, ação demolitória, histerismos latentes e frases como “solapar as forças primárias da conservação da espécie”. Pois é, o Dr. Sófocles já era, em si, um espanto. Na verdade, a Rua do Catete lhe dera uma formação gótica e o fantástico estava de tal forma entranhado em sua vida como um fruto em sua casca. Nós somos linguagem - e nada mais.
Mais econômica, a história de Chiquitá gira entre o catecismo e o exorcismo, com direito a um rápido e nebuloso ato de levitação. Fantasia? Alucinações do universo infantil? Qual a cota do sonho, qual a da realidade? “Aquela esfera, então, se desprendeu de suas mãos e a outra, a de dentro, a da garganta, num impulso, arrebentou-se, em estilhaços, nos ouvidos. Sem poder dominar as mãos que a asfixiavam, explodiu num grito terrível, que morreu sem ressonância na escuridão do quarto”. Morrer era uma imensa incógnita no mundo de Chiquitá. “O sol poente acendia nuvens vermelhas e os sinos batiam e era a morte anunciando. Morrer. Como é que era morrer? Por que é que a gente morria? Chiquitá nem ninguém sabia”.
Também a morte e a morte (do amor) em sentido figurado estão presentes em Embaixada da concórdia e Diálogo de amor com Gicelda. São duas histórias exemplares que lembram, e muito, o Aníbal Machado de A Morte da Porta-Estandarte e de Viagem aos Seios de Duília. Como o também mineiro Aníbal, Chico Peixoto nunca foi tão carioca como nesse Embaixada da concórdia, entremeado de gírias de época, onde ele, como o seu personagem Bidunga, “deixa correr o marfim” num delicioso jargão que oscila entre o morro e a malandragem da sinuca.
Uma linguagem que às vezes faz chiquê, “caindo na noite suburbana que a viração noturna refrescava”, ou tragada pela “massa ondulante e policroma do povo se esbaldando acima de todos os preconceitos”. Mas que procura se manter macha: “Tira a mão do meu ombro, duvidoso!”. Perdido no meio do bloco que “seguia movendo-se como uma cauda, homogêneo e inconsútil no meio da multidão de curiosos”, Bidunga atravessa o centro de um Rio antigo, de “bondes apinhados, ônibus incandescentes”, ainda tomado pelo humor ingênuo dos velhos camelôs anunciando reloginhos para crianças (“a criança anda e o relógio anda”).
Já a história de Gicelda, enriquecida por uma ilustração de Tarsila (a própria) do Amaral, tem um quê de Duília, de impossível retomada do amor ingênuo da infância que se transforma na decepção/recalque do adulto. A menina Gicelda que se “evolara para aparecer-lhe incômoda e velha”. Uma Gicelda deslocada no tempo, capaz de breguices irremediáveis do tipo “meu bem, você abusa do direito de ser encantador”. Aqui, como nunca, Chico Peixoto mostra sua extrema habilidade no tratamento dos diálogos: sólida estrutura interna e matriz de toda a narrativa.
Mas é em A Dentadura que vejo o melhor Chico Peixoto. Irônico, mordaz, ele passeia à vontade sobre o universo filosófico-bucal do Dr. Clemente Pé-Frio, um dentista dos diabos, um tipo irresistível: “Não acha que devemos colocar sempre a evidência sobre a personalidade exterior?” Já estavam aqui os termos empolados do Dr. Sófocles, pois também o Dr. Clemente se perdera nos desvarios da linguagem. Um tipo serôdio, segundo seus próprios termos, completamente antiquado, “escarafunchando cáries”em meio a “gorgolejos”, servindo de cobaia para sua “dentadura super-anatômica”. Um achado, uma figura o Dr. Clemente Pé-Frio, capaz de afirmar com toda a convicção: “Nós caminhamos para a conquista da dentadura integral”,
Uma curiosidade. A Janela traz como epígrafe o fragmento de uma frase de Mrs. Dalloway, de Virginia Woof: “... she always had the feeling that it was very, very dangerous to live even one day”, Na apresentação, Chico Peixoto diz que a epígrafe não tem muito a ver com as histórias do livro, sendo apenas “ uma simples inscrição que o autor guarda de cor há longos anos e informa também o sentimento que lhe ficou dos muitos que viveu”. Através de Clarissa Dalloway, Virginia Woolf dizia que “sim, viver é muito, muito perigoso”.
No Grande Sertão, Guimarães Rosa enfatiza a cada momento, via Riobaldo, quão perigoso é viver. “Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando. Viver - não é - é muito perigoso. Por que ainda não se sabe, porque aprender-a-viver é que é viver, mesmo”. Êta mundo pequeno, sô!
Ronaldo Werneck
Rio, Novembro de 95, publicado 96 in “Cataguarte” Especial Chico Peixoto