Chico Centenário

Textos Críticos - Literatura

Francisco Inácio Peixoto
faria cem anos agora em
05 de abril de 2009.
Em homenagem ao escritor da
Verde de Cataguases, ao amigo
Chico Peixoto, transcrevo um
texto escrito quando de seus 70 anos.

 

Impávido, o cadilaque levanta poeira e adentra a mata com a autoridade de um transatlântico. Colossal, como o vêem os olhos do menino. Só não apita porque seu “comandante” é extremamente discreto. É uma Cataguases aí pelos confins dos anos 1950 e o cadilaque é muito preto e reluzente – e soberano sobe o morro que dá na mata que dá no colégio que dá num tempo perto-distante que só pára na padaria onde o Martins faz pães de matinal frescor.

Sim, o tempo pára. Pelo menos nas madeleines da memória – e sempre! –, para o pão cotidiano. Sobe o morro o cadilaque, o morro que era o mundo que dava num prédio imenso com um painel que não entendíamos, que a cidade nunca entendeu. E, por isso mesmo, o perdeu: o prédio atônito sem seu pedaço mais caro, seu painel perdido entre perdas tantas. Era por aí num tempo onde “havia jardins, havia manhãs” – como dizia o “comandante” do cadilaque, citando Drummond do alto de uma britânica cachimbada: um quê de cacau, sabedoria e non-chalance.

O bigode elegantemente aparado, os cabelos já bem grisalhos, o bem talhadíssimo fato de veludo (como diria seu amigo Marques Rebelo) aquele negócio de cachimbar e uma recente viagem aos países do Leste Europeu – Gala dança/na noite branca de Leningrado –, tudo nele deixava literalmente boquiabertos aqueles ginasianos do interior. Era o senhor diretor, às vezes o professor de espanhol, o amigo de Portinari e seu painel, do Niemeyer que projetara o colégio e sua própria casa, do Marques – que ainda não conhecíamos –, do poeta Vinícius que pra lá mandou (Filhos? Filhos melhor não tê-los!) o seu Pedrinho – que, claro!, comia gilete, bebia xampu e fumava todas as nossa bingas: “dá as vinte aí, sô!”.

Era aí por volta dos anos 50 e para nós quem subia-descia o morro em seu cadilaque faiscante era o Doutor Francisco Ignácio Peixoto, que às vezes nos honrava com caronas onde nos pavoneávamos, privilegiados e soberanos. O Doutor Francisco, cuja casa frequentávamos em antevésperas de provas e datas quetais, estudando com Mabel e Maria Cristina, enquanto ele se consumia em seus afazeres na fábrica de tecidos. Ali mergulhávamos no “livraral” com autógrafos que descobríamos deslumbrados. A casa e a perspectiva, o mundo que se abria no interior da biblioteca que dava para a varanda que dava para o jardim de Burle Marx que dava para o rio Pomba: o mundo refletido naquela Cataguases em que ele vivia fora de Cataguases.

Já no Rio, final dos anos 1960, o Dr. Francisco Peixoto passava por mim e meu Gordini, que passava por ele, que passava por Chico Filho e Bárbara, que passava por Mabel e Quico e Ladeirinha, que passava por Dedé, Maria Cristina, Maria Inês e Zé Maria – Xicão! Xiquim!...Dona Melinha! Sem o cadilaque, movido a mocassins da Moreyra, Chico Ignácio passava por mim e meu Gordini, muito, muito mais lento que seus passos precursores de um Cooper inédito e vespertino pela Avenida Copacabana.

Foi por aí por esse tempo afora que já ensaiávamos uma amizade por meio de nosso amigo maior, o Doutor Rosário Fusco de Souza Guerra, e a gente já se permitia intimidades tipo “Chico, mas o Drummond, o Murilo; Chico, mas o Machado, o Guimarães & o não sei das quantas etc etc”, estimulados por um bravíssimo gin tônica e pelo lusco-fusco matinal do escritório do Doutor Rosárr. Já no final dos 60, graças a nosso poeta Marcelo Cabral (“o Chico é a figura mais importante de Cataguases”), a gente se dava conta de que era mesmo Chico Peixoto quem melhor traduzia o “diferencial” (nada a ver com o cadilaque) da cidade.

Já em meados dos 70, ficou a remembrança de uma tarde-noite em que, aí por volta do terceiro uísque no Brazão – ali na esquina que desce pra Ponte Velha, pro Pomba e pro mundão solto pelas pirambeiras dessas margens-vida –, no terceiro-quarto-quase-quinto uísque, nos cumprimentamos enquanto ele passava apoiado em Mabel e Cristina, entrecortado por uma réstia de sol oblíquo a se derramar pelas modernosas Matriz & Praça Santa Rita (essas matreirices que ele olhava, sempre!, meio arrevezado) e por um enquadramento meio Humberto Mauro, meio em contra-plongée, do velho prédio da Prefeitura – o Paço por ele amado e por todos nós em atávicos nós atados.

Então é aí por volta dos anos 70. E às vezes a gente ainda passa pela Rua do Pomba e vê Chico Peixoto, apesar de tudo – painel, colégio, fumaça de cachimbo –, a bater prosa longa com Dedé, cadeiras na calçada, ainda agora o elegante e jovial mocassim carioca e sem meias da Moreyra. E, de repente, cadilaque, mocassim, cachimbo, fumaça se evolando azul y exquisita – os anos 50, os 60, os 70, tudo, tudo subitamente atemporal. Como se ainda agora cadilaque e mocassim e cachimbo – e agora e ainda e sempre.

 


RW - 05.04.1979

Ronaldo Werneck