Meu primeiro contato com Guilhermino Cesar foi em setembro de 1967, no Clube Social Cataguases: rápido e superficial. Era a festa dos 90 anos da cidade e naquela noite houve a encenação de uma peça e foi lançado um Suplemento de O Cataguazes que Joaquim Branco e eu organizamos com textos e poemas que mostravam a trajetória artística da cidade, de Verde à nossa geração – que começava a despontar naqueles meados dos anos 60. Era um tubo-de-ensaio para o SLD e o Totem, que viriam logo a seguir, com direito a artigos que iam do professor Gradim ao jovem Carlos Moura anunciando uma Cataguases “novamente em tempo de cinema”.
Fusco fora, porque “em plena crise hemorroidária” – como nos dizia em bilhete enviado de Friburgo –, estavam ali, mais que maduros, todos os verdes remanescentes: o lépido Guilhermino, o Chico com sua peixotal figura, o “doutor” Martins Mendes, o Enrique de todos os Resendes. No improvisado palco, apresentávamos Carta aos Ases, primeira e única peça que Joaquim e eu escrevemos e dirigimos: um poema a quatro mãos, músicas de Pedro Branco e Messias dos Santos, uma endiabrada interpretação de Carlos Sérgio Bittencourt para o poema A Boba, de Francisco Marcelo Cabral, mais uma colagem de textos extraídos do Suplemento que, por sua vez, fora extraído da mina (que na época ainda parecia inesgotável) de palavras preci(o)sas produzidas em Cataguases, dos anos 20 à década de 60.
Todo o mundo lá no Social, com direito até a Humberto Mauro e Marques Rebelo. O papo com Guilhermino foi nada mais que formal e não chegou a se aprofundar nem mesmo quando, mais tarde, fomos quase todos para a casa do Chico Peixoto. Ali, apoiado em sua elegante piteira e displicentemente estendido numa chaise-longue, Marques Rebelo era a estrela solitária a subir e brilhar no firmamento de tiradas ferinas que ribombavam no rio e na rua do Pomba. Vários espelhos partidos depois, saímos eclipsados pelas boutades do Marques e nos perdemos no pó, no tempo e no espaço: eu voltei pro Rio, o Guilhermino pra Porto Alegre, e passamos doze anos sem nos ver.
Nesse meio tempo, tinha notícias esparsas dele através do Rosário Fusco, do Chico Peixoto, do Joaquim Branco e do Francisco Marcelo Cabral, que estava produzindo um filme do Paulo Martins sobre a Verde (nunca vi sequer um dos fotogramas, nem sei se o copião ainda existe, mas Chico Cabral me afirma ainda hoje que a entrevista do Guilhermino estava ótima). Muitas vezes por matérias de jornal que anunciavam sua redescoberta de Qorpo Santo, o dramaturgo maldito dos pampas, ou se detinham em sua biblioteca, a maior de Porto Alegre e possivelmente uma das maiores de todo o Brasil.
E confesso que batia um certo orgulho quando via Guilhermino apontado entre os mais eruditos professores universitários do país. Mas o que batia mais fundo era mesmo a força de seus poemas: “Abram a porta,/ela precisa entrar/para ser tratada./Sim, parece nada,/mas, na linguagem, toda ferida/é grave/.../Vejam bem. Feriu-se de noite,/na ultrapassagem do som?/Ou foi, no claro, sem ver/o perigo? O muito claro/não lhe serve nunca/se a linguagem pretende/chegar à poesia./Cuidem bem dela;/tenham paciência./A linguagem se aviva/com poucas palavras./As precisas”.
Nos vimos pela segunda e última vez em 1979, quando do relançamento da Revista Verde em Belo Horizonte. A coleção de Verde que possuo, devidamente autografada, foi presente do José Mindlin, da Metal Leve, que acabara de republicar todos os exemplares da Revista em cuidadosa edição fac-similada. Além de Mindlin e de vários escritores mineiros, o relançamento de Verde no Palácio das Artes contou com a presença de três dos participantes do movimento: Camilo Soares, Cristóforo Fonte-Boa e Guilhermino Cesar, que havia feito um emocionado prefácio sobre Verde & seus velhos companheiros na aventura, que vinha encartado em um fictício número extra da Revista, junto com os fac-símiles. Rosário Fusco morrera há coisa de dois anos e Chico Peixoto ficara em Cataguases, possivelmente sofrendo ainda de emoção pelo comparecimento maciço dos amigos à festa de seus 70 anos, em abril daquele ano.
Convidados pela prefeitura de Belo Horizonte, eu e o Chico Cabral acabamos hospedados no mesmo hotel dos Verdes. Lembro de longos papos com Guilhermino no saguão do hotel e de um jantar com os cineastas Ricardo (Tostão, a Fera de Ouro) Gomes Leite e Paulo Augusto (Verdes Anos) Gomes. Foi quando um convite inusitado fez crescer minha admiração pelo “jovem” Guilhermino. Estava havendo em Belo Horizonte um ciclo sobre o cineasta Nicholas Ray e eles nos chamaram para um debate que haveria após a exibição de Rebel Whitout A Cause, o filme-ícone de James Dean e da juventude transviada dos anos 50, dirigido por Ray.
Não acreditava que Guilhermino aceitasse o convite: cinema, James Dean & Nicholas Ray não pareciam fazer parte das preocupações fundamentais do poeta. Ledo e inacreditável engano. Sentado a seu lado durante a projeção, às vezes entreolhava Guilhermino, pensando que o filme o estivesse aborrecendo. Qual o quê! Após a sessão – e para surpresa geral – ele participou ativamente dos debates, demonstrando um inesperado conhecimento sobre a obra de Ray, sobre o mito James Dean e principalmente sobre cinema, para espanto dos jovens cineastas presentes. Na véspera, ele me autografara a Verde escrevendo qualquer coisa como “Para o poeta, com a admiração e o abraço do velho Guilhermino”. Bobagem: ele nunca foi tão jovem como naqueles dias em Belo Horizonte.
Dois anos antes de nosso reencontro, Cataguases e o acaso nos reuniriam na mesma página do Suplemento Idéias, do Jornal do Brasil, em matéria que abordava o recente lançamento dos livros de “dois poetas cataguasenses”: o meu Pomba Poema e o Sistema do Imperfeito & Outros Poemas, do Guilhermino, que a bem da verdade nasceu em Eugenópolis. Foi quando me surpreendi com a descoberta de seus poemas de rara dicção/erudição, um poeta senhor de si e de seu instrumento de trabalho, maduro, muito, muito distante da ingenuidade dos verdes rompantes modernistas.
Poemas onde a poesia explode em fragmentos como “Os mares foram homeros lagos/antes de St.-John Perse?/Ou são/ agora, outra vez, os mitos/depois de St.-John Perse?/.../Perse! St.-John Perse na trapaça:/a coisa é simples como uma preá, uma vaca/pastando as flores do cemitério”. Ou, ainda, “Muito antes da manhã, o poeta,/animal astuto,/pula da placenta para ver o mundo./.../Animal astuto, o poeta./Oculta no espaço/a ignorância de si mesmo”.
Sistema do Imperfeito revelava um Guilhermino mais que perfeito, capaz de um ritmo de sutis ondulações, mescla de alexandrinos binários ascendentes, de perfeita cesura, com decassílabos biternários, coisa de maestro orquestrando suas palavras-instrumentos, como neste Trabalho: “São três e quinze da manhã e faço versos/à espera do nascimento da barata,/digo antes, da rosa na errata/de um velho poema com rimas de apoio./Fiz esses versos antes de Manuel/Bandeira, muito antes de Homero/.../Faço versos com os alexandrinos (o incerto/ritmo do Egito), debaixo de obuses e cruzes/de treponema pálido./Mas não há remédio?/ Hay./Faço versos até anoitecer em Praga/faço versos até endoidecer aqui/.../para esperar a ressurreição da poesia/a pobre desesperada/no Lixo”.
O verdadeiro erudito é aquele que não necessita demonstrar sua erudição. Ela é: quase que pré-existe em seu ser & essência. E isto me leva a Rosário Fusco, outro dos grandes de Verde. misto de italiano e mulato, “um metro e oitenta acima do nível do mar, saco roxo, cinta encarnada” (qual o maior? Não importa. Não agora. Nem nunca.). A Rosário Fusco, às manhãs atravessadas em sua biblioteca da Granjaria, o romancista transpirando uísque & personagens, enredado em álcool e vida que vinha da noite, solitário clarão: “Nada vale nada com algemas. A única novidade é o sol. O ser é. O criado em sua intransmissível solidão”.
Palavras que saíam assim de cambulhada, em meio a tresloucados palpites de loteria esportiva, receitas mirabolantes de escargots e tiradas de amor-humor sobre a gente que o cercava e justificava sua existência: da mãe, dona Auta, ao Chico Peixoto, o verde-fiel amigo de sempre, do Izidro Jacaré ao vizinho João Fabrino. Gente. “Gente é pra brilhar”, já nos dizia o poeta Maiakóvski. Gente é coisa simples, tessitura de vida. Gente é como mãe (salve, Drummond!): “não devia morrer nunca”.
E a gente que justificou a vida do Fusco remete de novo ao poeta Guilhermino, como neste Mergulho: “Mergulhar? Mergulho/onde quer que surja/uma nesga de gente/ - gente é que me tenta./Na paisagem? Não,/mergulho nas tripas/de Luzia, Cássia, Andréia, Joel/ - tripas ainda quentes;/é o que me tenta./No lábio?/Sim, no lábio/mergulho no escuro/do verso não dito/no escuro-e-alvo/do mito”
Último dos grandes da Verde, Guilhermino Cesar partiu no final do ano passado. Como se diz, para sempre. “Província do mundo em decadência”, no dizer do Chico Cabral, Cataguases fica ainda mais pobre. O que sobra é a poesia que soçobra nas palavras do poeta: “Foges? Eu fico./Não desistirei da tua, da minha explicação,/agora e no fim do entrudo,/enquanto houver a fonte, o fogo, a sorte,/enquanto o último homem/tiver aberta a sua chaga”.
Mas o poeta se nutre de poesia como “O escuro se nutre de alvas/o claro de escuridões./Poemas, de que se nutrem?/De poesia algumas vezes/como o Diabo se nutre/de Deus, quando Deus existe”. Depois, que diabos!, “Doente de poesia/não tem alívio nem cura/a menos que se interne/sozinho/no espaço incriado./No diamante não serve; é/demasiado claro./Convém-lhe o resguardo/dos recém-nascidos: olhos no escuro/vômito contido./O mais é deixá-lo/gemer à vontade”
Ave, Guilhermino! Salve, Cesar! A poesia permanece: “Ora bolas, rapaz. De que tonel/beberemos agora? Já não quero ser rei./Ora bolas, rapaz. Tudo se acaba um dia,/aqui ou no Arco-deVal-deVez./O Czar soube disso. A rosa é que não sabe ainda;/nasce cada manhã num verso que o poeta estragou./Ora bolas, rapaz. Não me diga o que pensa/ou não pensou fazer./Deixe-se afogar em coisa alguma,/e acabou-se”
Ronaldo Werneck
Rio, julho de 95, publicado em 1895 no “Cataguarte” s/Guilhermino