A Ponte do Brooklyn

Textos Críticos - Literatura

Onde estávamos? Ah, sim: ainda naquela livraria do Rossio, em Lisboa, onde também encontro uma edição bilingüe (tradução portuguesa de Maria de Lourdes Guimarães) do poema-livro “The Bridge”, do norte-americano Hart Crane, um dos poetas prediletos do escritor Jair Ferreira dos Santos – meu amigo e “assessor especial” para literatura em língua inglesa: ele sabe tudo e mais um pouco. Por acaso – e estranha coincidência, pois li os dois livros na mesma viagem – Crane é também citado em uma das “inconferências” de e.e.cummings, livro mencionado em minha coluna anterior.

Diz cummings em um trecho de sua quarta “inconferência”, intitulada “eu & tu & é” – com aquele texto característico, cuja forma prima pela ausência de espaçamento entre os sinais de pontuação, como se tudo brotasse de uma só vez, palavras que se juntam, que se fragmentam à deriva, pontos, vírgulas, parênteses. Tudo num só jorro, mas devidamente sincopado: “(...) Se um poeta é alguém,é alguém para quem as coisas feitas interessam muito pouco–alguém obsecado com o Fazer... (...) E no que lhe diz respeito ‘vida’ é um verbo de duas vozes–ativa,executar, e passiva,sonhar. (...) Não sentir completamente é pensar... crescer é um destino. (...) Embriagado e semporquê(falando de um ciclone,contando como por fim com o desaparecimento até mesmo da impossibilidade a si próprio se encontrou verdadeiramente e subitamente transformando-se no ciclone;não sucumbindo e não sobrevivendo;Sendo)o poeta Hart Crane conseguiu inventar o simulacro do que é crescer”.

Poeta pouco conhecido no Brasil, e acredito também nos demais países de lingua portuguesa, Harold Crane (Hart é diminutivo que ele usou literariamente) nasceu em 1899 em Garretsville, Ohio, e suicidou-se em 1932 – ao lançar-se ao mar do alto de um navio, quando do retorno de uma viagem pelas Caraíbas e México. Com menos de 17 anos, em 1916, Hart Crane já consegue publicar um poema numa revista de vanguarda. Em 1926 lança “White Buildings”, sua primeira coletânea, em que – nas palavras do grande poeta português Jorge de Sena – “se mostra dividido entre uma afirmação épica inspirada de Walt Whitman e o pessimismo difundido pela mensagem vanguardista de T.S. Eliot. Na vasta seqüência, The Bridge (1930), Crane atingiu a sua plena estatura numa magnificência de imagens que todas se organizam em torno da Ponte de Brooklyn, em New York, como símbolo da grandeza norte-americana e dos perigos da civilização industrial”.

O poeta Mallarmé dizia que “um poema não se faz com idéias, mas com palavras”. Mas, dizia também que a função do poeta era donner un sens plus pûr aux mots de la tribu – ou, na tradução/recriação de Ezra Pound, to purify the dialect of tribe. Em português de Cataguases, cuíca do mundo, “dar um sentido mais puro às palavras da tribo”. Ou “purificar seu dialeto”. Então, é de palavras, palavras “purificadas” e (por que não?) também de idéias que são feitos os poemas de Hart Crane. Como neste belo trecho de “A Ponte” (a Ponte de Brooklyn, também conhecida como a ponte dos suicidas), na tradução de Maria de Lourdes Guimarães:


A Ponte do Brooklyn

“Em quantas madrugadas, arrefecidas pelo repouso ondulante,
As asas da gaivota hão-de imergi-la e voar em seu redor,
Espalhando anéis brancos de tumulto, erigindo bem no alto
Sobre as águas agrilhoadas da baía a liberdade –

Então, numa curva inviolada, deixarão os nossos olhos
Tão espectrais como veleiros que cruzam
Uma página cheia de parcelas a arquivar;
– Até que os elevadores nos libertem do nosso dia...

Sonho com cinemas, truques panorâmicos
Com multidões debruçadas sobre uma cena fulgurante
Jamais revelada, mas passada de novo à pressa,
A outros olhos prometidos sobre o mesmo écran;

E TU, por cima do porto, ao ritmo da prata
Como se o sol te imitasse, embora deixasse
Um gesto nunca acabado no teu rasto, –
Implicitamente ficas com a tua liberdade!

De uma abertura no metrô, de uma cela ou mansarda
Um louco precipita-se para os teus parapeitos,
Oscilando aí por momentos, a garrida camisa enfunada,
E um gracejo solta-se da multidão surpreendida.

(...)
E de novo as luzes do trânsito que deslizam pelo teu idioma
Veloz e total, imaculado suspiro de estrelas
Ornando o teu caminho, condensam a eternidade:
E vimos a noite erguida nos teus braços.
(...)

Ó insone como o rio lá embaixo,
Em abóboda sobre o mar, erva sonhadora das pradarias,
Desce, vem até nós, os mais humildes,
E da tua curvatura empresta a Deus um mito”.


Isso sim, é o que se chama “dar um sentido mais puro às palavras da tribo”. Hart Crane – cujo nome, num rápido falar em portinglês, e para ouvidos absolutamente descuidados, resulta em “coração- crânio” – constrói seu poema no rigor do decassílabo inglês (a tradutora optou quase sempre por versos brancos). Forma & fundo. Evoé, Mallarmé! Hart Crane é por demais grande para tão curto espaço. Palavras-poema, palavras que purificam a língua – e novamente não consigo sair daquela livraria do Rossio. Há controvérsias?


RW - 04.02.2007

 

Ronaldo Werneck