Estrangeiros nos anos 60
e nessa cidade estranha
onde escrevivemos

Textos Críticos - Literatura

O telstar aproximou o mundo. E lá fora virou cá dentro, numa estranha, estranhíssima Cataguases, cidade do exterior mineiro. Aconteceu o diabo nos anos sessenta. Tudo rolou, pintou de tudo. De tudo & mais um pouco comportou essa mais que descomportada, incorreta década – ícone por excelência da inventiva rebeldia que poderia ter marcado nosso século, mas que se perdeu no ramerrão dos anos posteriores.
“Cada minuto é um século XX” – gritou Cassiano Ricardo, antes de ir caçar seus papagaios. Parodiando o poeta paulista, “cada 60 segundos dos 60 foram um século XX”: minutos-chave que valeram por todos esses cem anos e pelos que virão, se é que virão.

 

Levitar o Pentágono
Uma década explosiva, jorrando sangue & criatividade. Assassinato dos Kennedy; de Luther King; de Malcolm X; a guitarra ferina & bem-humorada dos Beatles; Mary Quant & a minissaia; o carisma de Che Guevara, o romântico revolucionário imolado nos Andes bolivianos; os monges budistas se incendiando via telstar num protesto pirotécnico & de grande appeal; o saque da pílula anticoncepcional, aquelas pedrinhas rolantes: sax, sex & satisfaction; Robbe-Grillet, Michel Butor, Marguerite Duras: o nouveau-roman; o poeta russo Ievutschenko transformado em popstar, fazendo a América e o Ocidente, faturando em dólar cada verso; Godard & a nouvelle-vague; Cohn-Bendit & o maio de 68 em Paris; a mãe Rússia nos aturdindo ao invadir a Tchecoslováquia, apesar da primavera & das pragas & sartreanas passeatas; o Kubrick de 2001 & Doctor Strangelove; o presidencial talco Johnson e seu fiel assecla, o General Westmoreland, polvilhando de napalm o Vietnam; os hippies, o flower-power & a ingenuidade da Marcha sobre Washington, quando num só uivo o poeta Allen Ginsberg imaginava levitar o Pentágono. Não levitar-se sobre o Pentágono – o que já seria uma façanha – mas fazer levitar o Pentágono, o próprio. A poesia tudo pode. Por isso, e agora sim, ainda havia Neil Armstrong levitando num balé-2001 por entre os murundus da Lua, salpicado de strass, stress & Strauss. Mas La Guerre est Finie, já dizia Yves Montand, via Alain Resnais & Jorge Semprun. The dream’s over, rebatia o não menos John Lennon, para desespero dos outros três & de todos nós & vocês.

 


O Anunciador
E, antes que acabasse de vez, o-Brazil-S.O.S.-o-Brazil fez-não-fez. Ao lado da tragicômica, simiesca, gorilal implosão de 64, os sessenta trouxeram a explosão tropicalista de Caetano & Gil, de Capinam & Torquato, de Hélio Oiticica & Rubens Gerchman, de Glauber & sua Terra em Transe, de Zé Celso Martinez & sua redescoberta do Rei da Vela e do cáustico amor/humor de Oswald de Andrade. E de novo, e como contrapeso, a implosão, o negrorror do AI-5 de dezembro, não por acaso 13, de 68. De quebra, o Arena, que cantava Zumbi, e o Opinião, com o samba de Zé Kéti descendo o morro pra Copacabana, juntando-se ao Carcará de João do Vale & à voz de Nara & Bethânia e inundando o país com um canto de resistência, onde Gullar, Vianinha e Paulinho Pontes acenavam para um mundo socialmente mais justo.

Mas vejam que por volta dos 60 também a turminha de Cataguases não fez por menos. Das peças surrealistas, dos happenings do CAC, o Centro de Arte de Cataguases, ao não menos pomposo Cine-Clube Serguei Eisenstein, que acabaria desaguando no cinema de Paulo Bastos Martins, na experiência vanguardista do filme “O Anunciador, O Homem das Tormentas”. Trabalho de equipe do Paulo, do fotógrafo Mário (o outro) de Andrade, mais Carlos Moura, Antônio Jaime Soares, Silvério Torres, sem contar a participação de toda a cidade, um só set, um só estúdio – oh inesperada penca de artistas! Quatro décadas após Humberto Mauro, Cataguases novamente em tempo de cinema. O que só foi possível através da produção de Francisco Marcelo Cabral, guru & mentor intelectual de toda a geração que atuou no cenário dos 60, principalmente da outra equipe, que se debatia numa constelação de palavras & brancos semânticos, buscando i punti luminosi, as veredas da vanguarda numa selva selvaggia de letras & símbolos gráficos.

 


O Muro
Êta gente doida, sô! No início dos sessenta, Joaquim Branco, Paulo Martins, Célio Lacerda, Plínio Filho, Aquiles e Pedro Branco, Carlos Sérgio Bittencourt, Lúcio Miranda, Jorge de Oliveira, Aécio Flávio e eu e mais Ernesto Guedes, lançávamos O Muro, jornal muitas vezes datilografado e paginado nos fundos do armazém de Seu Plínio Guilherme, pai do Lúcio e do Plininho, e não sei por que cargas d’água mimeografado no antigo armazém do SAPS, em frente à estação ferroviária. Quer dizer, um jornal incontestavelmente de grande substância, pois egresso dos fundos de dois armazéns. E a gente saía vendendo O Muro pelas ruas de Cataguases, para espanto e narizes torcidos da população. Lembro que num domingo, finda a missa de Santa Rita, o Dr. Antônio Martins Mendes quase nos põe pra correr ao lhe oferecermos a jóia rara (“não leio pasquins, nem publicações imorais”, reverberou o ilustre tribuno). Tribuno e poeta da Revista Verde (“vamos, que a caminhada é longa...” & coisas quetais). Quer dizer, o verde Toniquim Mendes já estava pra lá de maduro e não se sustentava em seu galho. Custamos a engolir a afronta, pois já éramos também rapazes muito capazes de não mais querer somente ver de forde ou não forde nossos ases, mas de tomar assento e até mesmo a direção do forde verde em que Mário & Oswald de Andrade se viam embarcando para ver (nunca chegaram) os antigos ases de Cataguases.

Aliás, nosso “veículo de distribuição” era também um forde, um forde negro, o famigerado “morcego” do Seu Branco, pai de Joaquim, Pedro e Aquiles. Mas depois voltamos a “reatar” com a Verde, através de entrevista dada por Francisco Inácio Peixoto ao Muro. Daí, ficou uma amizade que perdurou até sua morte. O Muro (também, e não por acaso, título de um livro de contos de Sartre) durou mais que Verde. Quer dizer, uma dez edições & alguns anos, antes que tombasse – aliás, como é do próprio destino dos muros, de Cataguases a Berlim. Ou até que tombássemos todos nós, on the road & easy rider. Carlos Sérgio foi pro Banco do Brasil em Santo Antônio de Pádua, Aquiles pro BNH, Célio e Plínio pra medicina e a engenharia, Ernesto, Joaquim e Pedro, mais o Flavinho, exatamente & também pro BB, pra onde vai (ou ia?) todo mundo de Cataguases. Inclusive eu, que na época ainda estava indo pro Rio de Janeiro morar com o Paulo Martins numa pensão da Voluntários da Pátria, onde o Ziraldo morara – e cujo velho casarão encontra-se ali ainda hoje, impávido, inacreditavelmente de pé & de frente pros cinemas do Estação Botafogo. Enfim, a equipe se dispersou. Cai novamente on-the-road-Rio-Bahia e andei por uns tempos comendo acarajé & otras cositas más em Salvador, praticamente sem saber da turminha. De novo no Rio (capital: Cataguases), acabamos retomando tudo, que esse negócio de escrever é vício e compromisso, como veríamos logo depois.

Carta aos Ases

Era aí por volta de 67, Cataguases fazia 90 anos, e a equipe já meio dispersa, com várias defecções, restando só o pessoal que realmente se embriagava com o gosto amargo da literatura (meus sais!, meus sais!, “gosto amargo da literatura” é puro mau-gosto na escritura!). Pois é, ficamos somente nós e uma paixão freudiana por Cataguases, essa “cidade do exterior mineiro”, como eu diria mais tarde em “Pomba Poema”, ou como dissera antes o verde Enrique, a fina flor dos Resendes: “essa cidade estranha /onde nascemos/e, às vezes, morremos”. Mais tarde, Francisco Marcelo Cabral usaria o meu verso e o do Enrique como epígrafes do seu admirável “Inexílio”. Pois é, o amor que move o Sol e a Terra e até o “torrão natal” nos levou a fazer um Suplemento pro jornal “Cataguases”, retomando o viés literário da cidade: de Verde à Revista Meia-Pataca (obra da poetal dupla Chico Cabral/Lina Peixoto, depois também del Peloso). E chegando até nós, aqui onde estamos/estávamos: em plenos anos 60. Ou não mais estamos?

Lembro que havia um poema a quatro mãos, meu e do Joaquim Branco, paródia-quase-paráfrase daquele de Márioswald de Andrade. Foi assim mesmo que Mário e Oswald de Andrade assinaram a “Homenagem aos Homens que Agem”, o primeiro & único poema que fizeram juntos, publicado com exclusividade por Verde, aquele do Todos nós somos rapazes/ muito capazes de ir ver/ de forde verde/ os ases de Cataguases. Nossa obra chamava-se “Carta aos Ases” e saiu direto das mesas do Clube Social, num daqueles fantásticos bailes dos anos 60. O bate-coxa explodindo no salão e Quincas & eu absortos com nossa escritura a dois, imagens do trem-de-ferro furando a noite, anúncio de alba vazando da avenida: “fumaça & paisagem”.

O poema, também ele o único que eu e o Joaquim fizemos juntos, acabaria gerando a peça homônima “Carta aos Ases” em homenagem aos Verdes, que encenaríamos no próprio Clube Social em setembro de 1967, com músicas de Pedro Branco e Messias dos Santos – e com emocionada interpretação de Carlos Sérgio Bittencourt para o poema “A Boba”, de Francisco Marcelo Cabral. Na platéia, atentos e também devidamente emocionados o verde trio formado por Francisco Inácio Peixoto, Guilhermino Cesar e Enrique de Resende, mais Marques Rebelo e Humberto Mauro. Depois, rumamos todos pra casa do Chico Peixoto e o papo rumou, quer dizer, rolou madrugada adentro. Verde, Meia-Pataca, Muro – tudo & todo mundo junto, no mesmo rumo, como se para sempre.

Vale a pena viver em ti

O Suplemento trazia uma apresentação das mais cotubas feita pelo Chiquinho Cabral, uma outra mais professoral de José Silva Gradim, textos “éditos & inéditos” dos remanescentes de Verde (de Porto Alegre, Guilhermino Cesar; do Rio, Enrique de Resende; de Cataguases, Chico Peixoto; de Friburgo, Rosário Fusco – que nos escreveu se desculpando e mandando “abraços hemorroidários”: o velho & imbatível Fusco!). Havia até um poema do Martins Mendes: briga literária não é briga que se preze. E ainda a retomada de um poeta perdido nos confins dos anos 30/40, um “bardo brado solitário” chamado Henrique Silveira: Jogarei minhas mãos fora/não sei se no mar/se numa cova de barro.//Não sei se no mar/para a fuga dos cetáceos adolescentes,/para o desprezo dos olhos naufragados. Sinistro como em 1943, ano de sua morte, a guerra e a doença no mesmo embornal: Muitas não quererão apertar/ minhas mãos/mãos tuberculosas sem música afinada./.../como pressagiando/meu sono próximo de Morte bolchevisada.

Henrique Silveira morreu de tuberculose aos 23 anos, num replay mais-que-perfeito da tragédia que tomou de assalto os pulmões de Ascânio Lopes, também desaparecido aos 23 anos, em 1929. Claro que Ascânio, o poeta maior de Verde, surgia no Suplemento com “Cataguases”, seu poema emblemático:...Há em ti a delícia da vida que passa porque vale a pena passar,/que passa sem dar por isso, sem supor que se vai transformando./.../Vale a pena viver em ti./Nem inquietude./Nem peso inútil de recordações,/mas a confiança que nasce das coisas que não mudam bruscas/nem ficam eternas. A seguir, aparecia a dupla de Meia-Pataca e, naturalmente, uma enxurrada de poemas novíssimos dos então novos ases de Cataguases, quer dizer, nós mesmos – que acabávamos de merecer página inteira na capital, no Suplemento Literário do Minas Gerais, com direito a fotos, poemas & os cambaus.

SLD/Totem

É isso aí. Esse Suplemento foi o embrião do SLD – muita gente chamava de LSD, mas era mesmo Suplemento/Literatura/Difusão – que Joaquim Branco & eu editamos de 67 até o final da década, já contando com nossa “porção-mulher”, i.e., uma porção de meninas, pois nunca fomos de discriminar poetas, sexos à parte, de qualquer parte: Lecy Delfim, Dayse Lacerda, Arabela Amarante, Therezinha Castro. O SLD significou também nossa adesão ao poema-processo – fomos certamente sua mais importante vertente em Minas, lançando inclusive novíssimos poetas da terra, como Sebastião Carvalho e Adolfo Paulino e outros de outras terras, até mesmo do exterior. O SLD gerou também dois frutos inesperados e inesquecíveis: os festivais de música que eu e Joaquim Branco organizamos em 1969 e 1970, com ampla repercussão na mídia de todo o país (ver box).

Na década de 70, o SLD acabou desaguando no Totem, que acredito tenha sido nossa experiência mais bem sucedida, mais madura, portanto “menos verde”, se é que me entendem. Foi em Totem que procuramos “rever para aprender/aprender para renovar”, aquela bandeira do poeta Mário Faustino, que bravamente resiste ainda hoje entre nossas afinidades eletivas. Foi em Totem que buscamos recuperar a memória de Cataguases via entrevistas com Rosário Fusco, Humberto Mauro e Francisco Inácio Peixoto, que já naquela época chamávamos carinhosamente de Chico – com todo o orgulho por pertencermos ao restrito clube de seus amigos mais chegados. O resto é história – e, como podem perceber, também faço frases feitas.

O resto é o que ficou. O resto acho que é o Chico Peixoto, na casa de quem conhecemos o Marques Rebelo, que brigava conosco porque andávamos de “namorico” com os poetas concretos de São Paulo (“veja só, poesia concreta é coisa de gente rica, olha aí, de Pignatari” – sem saber que o Décio era um mero professor universitário, que passava ao largo dos Pignatari e de seus dólares). O resto é o resto, o que restou, os porta-restantes. O Rosário Fusco, que conhecemos bem mais tarde e que nos marcou profundamente – e para sempre. Um pouco, que deveria ter sido muito, do Guilhermino Cesar, mestre sumido na distância do Sul, subitamente recuperado em BH e depois perdido pra nunca mais. Principalmente, o que restou foi muito do Francisco Marcelo Cabral (nada Cataguases/ nada me faz/ te amar menos), a melhor de nossas entrevistas no SLD, o Chiquinho Cabral, principal “culpado” – falo por mim e, acredito, por todos aqueles totêmicos jovens dos anos 60 –, incentivador-mór, motor & matriz dessa nossa estranha aventura de escreviver. Estranha que nem Cataguases, onde, às vezes, como estrangeiros, ainda escrevivemos.

Ronaldo Werneck
Publicado em “Cataguarte Especial” – Cataguases, setembro de 1999

Ronaldo Werneck