No dia em que ele desapareceu do mundo, a Escola de Samba Império Serrano aparecia na avenida cantando o antológico samba-enredo de Silas de Oliveira: “Vejam esta maravilha de cenário/É um episódio relicário/Que o artista, num sonho genial/Escolheu para este carnaval./E o asfalto, como passarela/Será a tela,/Do Brasil, em forma de Aquarela”. Era o domingo de carnaval de 1964, 09 de fevereiro, dia em que a cantora Carmen Miranda, a amiga que eternizou sua música na América, estaria completando 55 anos.
Seis décadas antes, 07 de novembro de 1903, esse ubaense glorioso nascia na rua 13 de maio, perto da praça da Prefeitura, hoje São Januário. A família morou no largo de São José, que após 1922 seria a praça da Independência. Ali, a infância do interior e por isso mesmo levada da breca. Da breca mesmo: seu mau humor, seu gênio genial e genioso, marca registrada, vai viajar muito além das mangas Ubá e pela vida afora. Também, pudera: nem bem completara sete anos e já ficara sem a mãe, Angelina de Resende Barroso, morta de tuberculose aos 22 anos. E, dois meses depois, sem o pai, o advogado e poeta João Evangelista, tocador de violão e cantor de modinhas, boêmio e personagem importante na cidade.
O menino tinha realmente a quem sair. Criado por tia Ritinha, solteirona e pianista de cinema, com ela aprende seu verdadeiro ofício: “tenho orgulho porque, para comer, poderia ter furtado, tomado dinheiro emprestado – para não pagar – ou feito bandalheiras parecidas. Ao contrário disso, fiz do piano a minha enxada”. Duro aprendizado, desenvolvido na “escola de piano com pires”. Um pires em cada mão: era assim que percorria as escalas musicais do piano. Em pouco tempo já “se safava” – se o pires caísse, levava umas varadas de marmelo. Logo era um hábil pianista e já acompanhava tia Ritinha no Cine Ideal.
Artista polêmico, dinâmico, talentoso e irreverente, tudo o que fazia, fazia bem feito. Entrou meio por acaso em várias profissões. E sempre que se meteu em alguma coisa – no rádio, nos jornais, nas transmissões esportivas, nas apresentações de shows de calouros – ele que ia para substituir acabava virando titular. E sempre inovando. Exemplo disso é a gaitinha, a gaitinha que inventou para anunciar os gols. Se o som era mais alto, era gol do Flamengo. Um caso de coração dividido: ubaense de nascimento; carioca por adoção; baiano por paixão. E principalmente Flamenguista, é bom que se diga: daqueles de brigar no campo, muitas vezes abandonando o próprio microfone, comandado pela intensidade do amor à camisa.
De goleiro amador em Minas, de óculos e tudo, a vereador veemente no Rio de Janeiro – o segundo mais votado em 1946, lutou e conseguiu a vitória de fazer o estádio do Maracanã ser construído onde até hoje se encontra. De menino do interior a músico de sucesso no exterior. Sempre surpreendente, com nesta entrevista em Buenos Aires, 1954, logo após dizer que abandonara a carreira de locutor esportivo depois da derrota do Brasil em 1950. “Que tal como vereador?” – Um desastre. “E como advogado?” – Não nasci para isso. “E que nos diz do jornalista?” – Trabalhei 16 anos nesta apaixonante profissão. Trago tinta de imprensa no meu sangue. “E o narrador esportivo?” – Cansei de difundir disparates. “E o compositor?” – Esta é a minha vida. O compositor, porém, teve que se fazer diretor de orquestra para tentar salvar o samba, gravemente enfermo do mal do bolero. Minha orquestra tem a pretensão de ser uma espécie de penicilina para ser aplicada no samba”.
Poucas vezes o planeta foi assim tão brasileiro como ao longo de suas composições. Desde “De longe”, o primeiro samba, feito em Ubá ainda aos 15 anos, ao hino que compôs logo no ano seguinte, “Ubaenses Gloriosos”. Uma trajetória de pautas ricas e brilhantes até os derradeiros “Já era tempo”, samba de 1962, com letra de Vinícius de Moraes, e “Longe de Você”, de 1963, com Luís Peixoto, o grande parceiro das batucadas da vida inteira.
“De longe” e “Longe de você”: títulos que não se cumpriram. Nem Ubá, nem o Brasil. Nem mesmo o mundo. Ninguém nunca mais vai ficar longe de suas canções. Naquele domingo de carnaval, ele vestiu uma camisa amarela e saiu por aí, ruim de fato, o corpo que se embalança pelo turbilhão sem fim da galeria. Nunca se viu compasso tão brasileiro. Todo o seu coração se agita e palpita bem ligeiro, cai pra lá, cai para cá – e nos fascina e é o tal: um luxo só e muito glorioso esse tal de Ary Barroso.
RW - 16.01.2005