Restam rastros que explodem e ardem: Baden-Baden, Baden-pólvora, violão-de-outono, intento, violão-Verlaine, longo-lento-lamento. Violão veloz assim jamais. Jamais assim violão-devir. Jamais vou ver/ouvir. Nunca mais a inesperada agilidade dos acordes alucinados, alucinantes. Baden de branco e magro e breve. Tão magro e leve como se no fim por vício levitasse. Como se pelas veredas de Vinícius seu violão voasse. Com essas palavras eu fechava meu show “Dentro & Fora da Melodia”, em 2001 – o violonista Baden Powel e o poeta Vinícius de Moraes já mortos. Vinte e sete anos antes, Baden & Vinícius vivos e a toda, as “pretinhas” de minha Lettera-22 registravam a presença dos dois parceiros.
O violão epiceno
Como os músicos, também as pessoas se dividem em comuns e eruditas. Com uma ligeira colher-de-chá para os comuns de dois, ou epicenos. E tanto para uns como para outros, cabe a inversão de lugares & valores: o que aqui é coisa de gênio, pode ser banal mais adiante & etc. Mas num ponto as pessoas, como os músicos, estão sempre de acordo: Varre-e-Sai, cidadezinha do Estado do Rio de Janeiro, conseguiu a façanha aparentemente inacreditável de dar ao Brasil um compositor e virtuose de projeção internacional. E ao bravo e mui nobre poetinha Vinícius de Moraes a chance de fazer uma das mais profícuas parcerias da MPB.
Desde garoto, ele tirava do violão os acordes mais incríveis, com espantosa agilidade. E a intimidade entre homem & instrumento cresceu a tal ponto que hoje os dois chegam a se fundir, a se enroscar quase pecaminosamente a cada contato, a cada reaproximação, como se sentissem a falta do outro. Dois amantes que se encontram e se integram e se entregam insaciáveis, entre fragmentos de sons brilhantes. E é como dois seres que se amam a união entre Baden Powell e seu instrumento: mãos que machucam e acariciam, mandando ver, num só repente, do afro-samba a Johann Sebastian Bach.
Scotch com biscotinhos
Durante muitos anos na história da humanidade os poetas estiveram “por cima da carne-seca”. Naturalmente, regada a um uisquinho. Os trovadores medievais que o digam. Cantando em praça pública, eram os arautos dos anseios e alegrias do povo. O disco, os shows, principalmente a televisão, tornaram os compositores de hoje uma espécie de “trovadores eletrônicos”, ocupando o lugar do poeta, que teima em se fechar em copas, ou em capas herméticas.
Vindo de uma geração preocupada com “os altos objetivos metafísicos da poesia”, o poeta Vinicius de Moraes entrosou-se, não mais que de repente, com uns garotos que teimavam em pensar a música popular brasileira de um modo inteiramente novo. O casamento foi desses de ninguém botar defeito: os meninos precisavam do poeta para traduzir suas inovações, e o poeta precisava dos meninos para chegar ao povo.
O que veio depois, já faz parte da história da MPB. De Tom Jobim a Toquinho, passando por Carlinhos Lyra, Baden Powell, Chico Buarque & etc, o poeta teve sempre ao seu lado o time mais respeitável que se possa imaginar. “Que coisa mais direita”, diria ele. Mas o que a maioria do publico talvez não saiba é que através de Vinícius a poesia brasileira ampliou seus horizontes em termos de aceitação de massa. Aquela mesma massa que “um dia ainda vai comer do biscoito fino que eu fabrico”, como disse o modernista Oswald de Andrade. Hoje, um show com o poetinha “é massa” e já pode contar, de leve, com alguns biscoitinhos finos. Claro, acompanhados do mais puro scotch.
RW - 17.10.2004