Há exatos 30 anos, em junho de 1969, a equipe do SLD realizou o “1º Festival de Música Popular Brasileira de Cataguases”. Na Comissão Organizadora: Lila Carneiro Gonçalves, Geraldo Ramos Santos, Joaquim Branco, Paulo Dalforne, Milton Barbosa e Ronaldo Werneck. No júri, presidido pelo poeta Francisco Marcelo Cabral, nomes como Lúcio Alves, Nélson Motta, Mariozinho Rocha, o filósofo Jorge Roux, o crítico (na verdade, de cinema) Alberto Silva e os poetas-processo Álvaro de Sá, Nei Leandro de Castro e Moacy Cirne. No palco, belas toadas como “Virandeiro”, de Messias dos Santos e Eugênio Malta (cantada por Luely Figueiró, aquela eterna “certinha do Lalau”), mesclavam-se a experiências de vanguarda: “Trânsito Livre”, de Aquiles Branco, e a vencedora, “Apocalipopótese, a paz depois”, do paraibano Marcus Vinícius.
Mais tarde parceiro de Paulinho da Viola e de Augusto de Campos, Marcus Vinícius lançaria nos anos 70 dois belos “LPs de autor”, com uma penca de músicas experimentais. Hoje é maestro, compositor de trilhas para cinema e arranjador de renome em São Paulo. Sua “Apocalipopótese” remetia à hipótese do Apocalipse segundo o neologismo criado pelo artista plástico-tropicalista Hélio Oiticica. Em cena (ou sina), havia ainda a cataguasense Maria Alcina, estreando no showbiz com a eletrizante “Pesadelo Refrigerado”, de Alfredo Condé, um saque sagaz de Carlos Moura, naquela letra ainda hoje up-to-date: “Uma fazenda no Texas/um rifle na porta aberta/em Nova York uma cabala/um buquê de flor em Dallas/.../Há sempre um lado incendiado/um John queimado e um metralhado”. “Pesadelo” ficou em 2º lugar e Alcina, melhor intérprete, ganhou de Nelsinho Motta a promessa de lançá-la no Rio (de Janeiro, seus sacanas!).
Zooilógico – Um ano depois, em julho de 1970, seria a vez do grande frisson performático-musical da história de Cataguases. A repercussão do evento anterior fora excelente, com ampla divulgação na mídia de BH e do Rio – e as freqüências do meio musical estavam antenadas em Cataguases. Como o próprio nome já indicava, o “2º Festival Audiovisual de Cataguases” era um outro tipo de proposta feita pela turma do SLD, no sentido de mostrar a música de vanguarda com uma roupagem cenográfica, trazer o poema-processo para o palco, representar visualmente o som & coisas quetais. Pois é, aquele “papo-cabeça” dos anos 60 deu o maior ibope em Cataguases e em todo o país.
Nunca, nem nos áureos tempos de Verde ou Humberto Mauro, a cidade ocupou tanto espaço na mídia nacional.
Com uma Comissão Organizadora formada por Geraldo Ramos Santos, Joaquim Branco, Ronaldo Werneck, Ernesto Guedes e Carlo del Prete Silveira, o Festival trazia a Cataguases, como concorrentes, nomes já conhecidos no cenário nacional: Rildo Hora, Ruy Maurity, Carlos Imperial, João Medeiros, Gutemberg Guarabira, Luiz Carlos Sá (o trio “Sá-Rodrix-Guarabira” foi formado a partir do Festival de Cataguases), José Carlos Capinam, Ronaldo Tapajós, Bia Bedran, Trio Yrakitan, Equipe Mercado e até mesmo Gilberto Gil, que mandara de Londres uma parceria inédita com Capinam. “Zooilógico”, seria defendida por ninguém menos que Gal Costa, depois por Jards Macalé e depois por ninguém, já que os dois não puderam vir a Cataguases por motivos – quais mesmo? – vamos dizer, “ilógicos”. Gal acabaria gravando “Zooilógico” num de seus LPs da época: “Zoo, Zoo, Zoo, Zoológico/Ilógico/Logo sou/Zoológico/Ilogico/Logo sou/ Logo sou a feros o zero a cidade/Logo sou a ferocidade”. Vocês se lembram? Eu sim eu não: zooilogicamente que sim-não.
Tango Terrível – Quem veio foi José Carlos (Soy Loco por Ti América) Capinam, um dos letristas-ícones do tropicalismo. Mas por conta da outra música que classificara, “Gás Paralisante”, em parceria com o pernambucano Aristides Guimarães: “Falamos/Depois falimos/Respiramos/Depois paramos/Só vão ficar as estrelas/E o mar batendo nas pedras/Dos bujões/Para as canções/Dos bujões/Aos corações/O gás do Orgasmo/Agônico/O pânico Orgânico/Das paixões/E o mar batendo nas pedras”. Capinam acabou ganhando o Festival e me disse que com o dinheiro iria comprar, imaginem!, uma máquina elétrica para escrever seus poemas. Quais? Perdemos o contato e não os li jamais. Bons tempos aqueles, quando os poetas ainda buscavam calar os letristas de ocasião, empunhando seus eletromágicos teclados contra guitarras nem sempre plugadas no novo.
Na verdade, mesclando compassos fortes a fugas dissonantes, a 2ª colocada, “Meio-dia, doze mortes” (“Cheque verde cheque mate cheque morte/Choque/Chocolate/As locomotivas se locomovendo se movendo loucas/A cidade devorando, devorando, devorando tudo”), do mesmo Marcus Vinícius que ganhara o Festival de 1969, era bem superior à canção de Guimarães & Capinam. Como também “Harpa Selvagem ou Nero Revisitado”, de Jadir de Sousa/Aquiles Branco, defendida com grande garra por Maria Alcina (de novo, melhor intérprete): um delírio que mesclava Roma & Wall Street, tendo o poeta maranhense Sousândrade como referencial & (porta) bandeira. Ou ainda “Chevrolet’s Go Home”, de Francisco Condé, com uma letra daquelas endiabradas do Antônio Jaime Soares: “O final, o fim, a nau/O sinal, o sim, o não/Chevrolet’s go home/No fim da noite/.../Som de plastibeijos a ferir/A carne viva estremecer/No sul sem fim/O sul sem cor/.../Chevrolet’s go home/No fim da noite/No fim do mundo”.
Isso sem contar a outra composição de Marcus Vinícius, “Se for com dez pés lá vai”, um bem-humorado rock sobre tema de cordel (“Você me deixa espantado/Na luz mansa dessa tarde/Meu amor escorregado/.../Eu fico anestesiado, assim/Teu riso desaba sobre mim/.../Você cai/Se eu cair, caio por cima/Dos olhos desta menina/E se for com dez pés lá vai”). Ou o delírio bélico/psicodélico de “Cristycaia”, de Messias dos Santos e Carlos Sérgio Bittencourt (“Pra ver a nave de Marte/E contar pra todo mundo/Que vi o avião de Plutão/Talvez ir no cais/Esperar o caos/Que vem do Laos/Talvez esperar Cristycaia que vem”. Ou a explosiva manemolência do “Tango Terrível” de Alfredo Condé e Carlos Moura, um momento totalmente tropicalista que o júri não entendeu (o Affonso Romano, um dos jurados, veio me perguntar se seria válido votar em um tango num “festival de vanguarda”!). Era sim, Affonso, principalmente quando cantado pelo Turi-trajando-Turi, de branco-malandro, Seo Mané!, de branco-sambista, um paradoxo tropical, em contraposição à letra de vários achados: “Tango terrível/Madrugada/Gardel Gardênia/Média luz/Cama de lona/Sob a mata/Luvas, polainas/e capuz”. E, finalmente, “Marina Belair”, que não cabe neste parágrafo.
Manicure do Escândalo – “Manicure/Escândalo dos dedos/Dédalus/.../Lapa ofegante ofélia/../ Vidrilhos olh’eyes/Yes olh’eyes/.../Esmalte mickey mouse para os dedos da lapa/Thomas de la rue and company limited london” – martelava a letra do poeta-processo Ronaldo Periassu para a marginal melodia (?) de seu parceiro Ricardo Guinsburg, autêntica “desarmonia-heavy-metal-avant-la-lettre”. No palco do Cine-Teatro Edgar, a performática Equipe Mercado fazia seu happening marcado pela guitarra de Stul e pela voz rascante da band-leader Diana, um furacão em cena. A apresentação do grupo era uma das mais esperadas daquela segunda noite do Festival, pois eles haviam participado do famoso “Show da Sucata”, no Rio, junto com Caetano, Gil & toda a tropicália. Além disso, o Mercado estava entre os finalistas do Festival Universitário da TV-Tupi, que acabaria vencendo com a bem-humorada “Mary-K no Esgoto das Maravilhas”.
Ronaldo Periassu, que viajara de carona comigo para Cataguases, me perguntara onde achar carne de cachorro. Distraído (na verdade, pensando num piano que teríamos de colocar no palco), disse qualquer coisa como “num açougue desses aí”. Só quando a Equipe subiu ao palco, com meros trapos sobre os corpos seminus, brilhantes, lambuzados de óleo (óleo?), é que vi a “função” da carne de cachorro: Diana, Stul & Co. entrecortavam acordes, scats & dentadas na carne, depois atirada a esmo na platéia. Nunca Cataguases viu nada assim, a chamada nata da sociedade recebendo na cara e onde mais pintasse grandes nacos de carne crua, numa canina caoticidade realçada pela estridência dos instrumentos e pelos rugidos de Diana: “Manicure do escândalo/Marina Belair/Afunda da furunculosidade”: e a bunda explícita voltada pro público atônito.
Apocalipopótese – Caos/carne/carnaval. Tiazinha perderia feio para o esplendor de Diana, caçadora que lançava sua presa aos quatro ventos. Quer dizer, até mesmo em Clementina de Jesus, a própria, que estava no palco, e foi premiada com um sangrento naco logo nos reluzentes sapatos que estava exato estreando, presente trazido de Paris por “meu filho branco” Hermínio Belo de Carvalho, como ela confessaria ainda no Rio, a mim e ao Marcelo Cabral. A debutante Clementina: um misto suburbano de ingenuidade, timidez e favelado orgulho. Ah, sim, esqueci de dizer: as grandes vedetes do Festival estavam na verdade em cena, mas não eram propriamente concorrentes. Tantas foram as celebridades trazidas para o júri, que resolvemos colocá-las no avantajado palco do Cine-Edgard, cenografado com belos e funcionais praticáveis pelo artista plástico pernambucano Raul Códula. Ali com certeza “nossas estrelas” iriam brilhar melhor. E não era pra menos.
Acredito que jamais houve um Festival de Música com jurados daquele jaez: de BH, o casal de poetas Laís Correa de Araújo e Afonso Ávila; do Rio, além de Clementina de Jesus, presidente de honra, o poeta Affonso Romano de SantAnna, acompanhado da Editora do Caderno B do Jornal do Brasil, Marina Colassanti (os dois começaram a namorar em Cataguases e estão juntos até hoje, evoé!), o crítico underground do Pasquim e colunista de Última Hora, Luiz Carlos Maciel, o crítico musical de Veja, Antônio Chrysóstomo, o do Globo e da TV Tupy, Nélson Motta, além do estado-maior do poema-processo: o casal de poetas Neide e Álvaro de Sá e mais Moacy Cirne e o papa Wlademir Dias-Pino.
O júri votou na música do Mercado como a melhor daquela noite e criou-se o chamado quiproquó. Joaquim Branco e eu fomos convocados pelo prefeito pruma reunião com o eminente delegado de polícia e o advogado oficial da comarca, ou coisa que o valha. Tínhamos que decidir: ou a Equipe Mercado voltava pro Rio ou o Festival terminava ali. Acabamos ficando com o Festival – e o Mercado (eu e Periassu somos amigos até hoje) e quase todo mundo compreendeu. Quase, porque a Veja, a Manchete e os jornais do Rio esbravejaram até mais não poder, principalmente o Carlinhos Oliveira, que desceu o pau na “arbitrariedade” durante vários dias em sua coluna do Jornal do Brasil. Ou meu amigo Luiz Carlos Maciel, que mesmo com seu estilo soft & elegante, cobriu de elogios o Festival, mas chiou a mais não poder com a malasorte da Equipe Mercado.Mais do que nunca, Cataguases foi o cais, o caldeirão de onde caía o caos da criatividade – pra nunca mais. Ciao, apocalipopótese!
RW - 1989