“Abancado à escrivaninha em São Paulo/ na minha casa da rua Lopes Chaves/ de supetão senti um friúme por dentro”. Sentado numa mesa do Canecão, outro dia no Rio, tive a impressão de ver passar a diretora de teatro Bia Lessa, a quem não via há tempos. Ia falar com ela, mas quando me dei conta, pequena e ligeira, Bia sumia impávida entre a plebe ingente. Só quando a cena se abriu, ou se entreabriu, sob um véu onde se projetavam imagens de Ferreira Gullar falando o poema de Mário de Andrade – e logo luzinhas mil desciam do teto, estrelando um brasileirinho cenário de palha e palhoça – é que novamente me dei conta, agora sim, me dei conta do que Bia estava fazendo ali. Eram as luzes mágicas de Maneco Quinderé, eram as mãos de Bia vestindo a cena para Bethânia: “sem folha não tem rosto/sem folha não tem vida/sem folha não tem nada/ quem é você e o que faz por aqui/eu guardo a luz das estrelas”.
E logo Bethânia embarca em “Yayá Massemba”, de Roberto Mendes, com uma letra mais-que-porreta de Capinam: “Que noite mais funda calunga/no porão de um navio negreiro/que viagem mais longa candonga/ouvindo o batuque das ondas/compasso de um coração de pássaro/no fundo do cativeiro/é o semba do mundo calunga/batendo samba em meu peito”. Senti um friúme por dentro. Que ficou ecoando show adentro, grito/agreste, voz de Bethânia – viagem mais longa, calunga, semba, candonga, samba – compasso de coração de pássaro.
“Maria Bethânia/please, send me a letter/I wish to know things/And now in better/Beta-Beta-Bethânia” – a voz de Caetano me chegava ainda uma vez cantando para/a irmã. Um novo Caetano do “Purificar o Subaé”, que surgia logo depois na voz “dourada rainha senhora”: “Mandar os malditos embora/dona d´água doce que é/dourada dona senhora/amparo do sergimirim/rosário dos filtros da aquária/dos rios que deságuam em mim/nascente primária”. Senti um friúme por dentro.
Um friúme que me arrastou pra Bahia, exatos 40 anos atrás. Caetano me convidara “prum showzinho que vou fazer com minha irmã e aqueles amigos (Gil, Gal, Tomzé,) com quem você me vê passar pelas ladeiras”. Era o show “Nós por exemplo” – e o resto é tópico, trópicos, tropical história. Lembro que lá pelas tantas saí prum pipi estratégico e vejo quietinha mocinha bem baianinha-brasileirinha, muito da magrinha, muito de charminho com seu coque antigo, muito da absortinha, muito da sentadinha ou/vendo tudo lá de trás. Mocinha estranha, essa muito tímida mocinha. Volto do pipi pro primeiro espanto. Não é que no palco minha mocinha se fazia mulher, e de voz de dar friúme, voz tamanha e tanta?
Maria Bethânia cantava “Sol Negro”, do mano Caetano. E sempre que ela canta, o friúme não passa jamais. Ainda agora, o friúme volta quando ela cita Guimarães Rosa (“Qualquer amor já um pouquinho de saúde, um descanso na loucura”) e tange a boiada atônita do Canecão com aquele definitivo Armando Cavalcanti/Klecius Caldas de “vai boiadeiro que a noite já vem/guarda o seu gado/e vai pra junto do teu bem/é pequenina/é miudinha é quase nada/mas não tem outra mais bonita no lugar”. É quando me lembro de mamãe cantando, de todas as mamães, de todos os brasileirinhos cantando essas canções de dar friúme.
É quando me lembro de quanto a voz de Maria Bethânia povoou nossas vidas nesses 40 anos. É quando me lembro de velhos/ inéditos textos que escrevi há muito, muitos trinta anos atrás, prum catálogo de música popular que nunca foi lançado. “Com Licença”, que vou publicá-los agora e aqui e a partir de agora e sempre aqui.
Beta/O grito/Agreste/Bethânia
A gente também desafina na vida”. Com essas palavras, Maria Bethânia respondeu às acusações de que desafinava e autenticou com rara perfeição sua controvertida personalidade. Dificilmente, como nessa cantora baiana, haverá em outro artista brasileiro tamanha identidade entre arte e vida.
O que mais fascina em Bethânia é exatamente a coragem de assumir suas imperfeições, levando-as para o palco, num ritual de magia e encantamento. O palco é onde ela se transforma, ora agressora, ora agredida. É onde adquire proporções fantásticas. É onde sua voz, seu grito agreste, sua garra, inundam de vida a atmosfera. É onde sua presença imantada entre pelos sete buracos de nossas atônitas cabeças. O palco é onde Maria Bethânia se torna mais mística, passando ao público poções mágicas de uma cultura muito antiga e extravagante.
Tornando pública sua angústia, suas incertezas, o seu deslumbramento por músicas ditas de cabaré, Bethânia na verdade desmistifica a aura das canções supostamente classe A, recentemente ungidas a palavra de ordem nos palcos brasileiros. A vida tem muito de cabaré que, não por acaso, se escreve com C. Nisso, como em tudo, ela mostra a marca registrada de sua presença, deixando claro que uma artista de seu porte tem todo o direito de desafinar quando e onde bem entender.
Bethânia é pequenina, é miudinha, é quase nada, mas não tem outra mais bonita no lugar.
RW - 21.09.2004