Antes, Bethânia/Clara. Agora, Marisa/Nara. Leão & Gata Mansa. Duas vozes diversas, duas vidas & várias controvérsias: Nara Leão e Marisa Gata Mansa em dois textos retomados ao tempo perdido.
A canção despojada
Quando no futuro se falar de um período muito particular da MPB chamado Bossa Nova, sem dúvida o nome de Nara Leão será lembrado como um dos expoentes do movimento. A batida diferente exigia uma interpretação distanciada do vozeirão tradicional na época, e o canto de Nara preenchia plenamente a proposta da Bossa. A voz é pequena, é certo, mas pungente e rara. Qual o mistério?
Uma rigorosa seleção do repertório e, principalmente, não cair na tentação de gorgeios tão em moda quanto inúteis. O importante não é somente a canção, mas o “quê” e “como” cantar. Quem acompanhou nossa música no final dos 50 e nos princípios dos anos 60 sabe o que significa o nome Nara Leão. Uma voz aparentemente frágil, mas dotada de extraordinária força interior. Um canto intimista, é bem verdade, mas que soube trazer a público, baixo e bom som, grande parte das melhores canções dos últimos 50 anos.
A lição que fica dos inúmeros “scores” de Nara Leão é bem simples: saber escolher, ter consciência da importância e/ou qualidade da canção. Depois, se conter: se a escolha foi acertada, quem deve aparecer é a música. A partir daí, “dizer” despojadamente as frases musicais. Deixá-las escorrer como numa reunião íntima. Com um certo charme, um toque de classe que é sua marca registrada. Mas sem os floreios, “be-bops” & outros macetes tão comuns aos que procuram mascarar a (ir)realidade de uma canção sem sentido.
Suave, sofrida pantera
Falando, Marisa Gata Mansa lembra uma criança. Existe certa ternura quando sua figura grandiosa se abre em sons tão suaves quanto paradoxais. Ao cantar, a impressão é outra. É outro o rosto, é outra a voz que surge agora. Sofrida, pungente, com inesperada força. As músicas falam de solidão e abandono, e há em tudo um toque de veludo, traduzido em cicios, sussurros, qualquer coisa de pantera que se enrosca em si mesma, as garras brilhando. Um suave rugir na noite angustiada.
Não é à toa que, além de grande amiga, Marisa tem até hoje Dolores Duran entre suas grandes admirações. Como Dolores, a experiência de cantar dentro da noite lhe deixou uma cancha respeitável como artista. Como Dolores, Marisa também ganhou o seu “cotinoturno” quinhão de sofrimento.
Hoje, as bem elaboradas faixas de seu último elepê mostram que o repertório de Marisa é mais eclético, de Tom a Francis Hime, de Chico Buarque a Gonzaguinha. Mas é nos shows noturnos, ao lado do piano histórico de Ribamar, seu velho amigo e parceiro de Dolores, que ela encontra o seu verdadeiro “approach”. Gata e pantera, sofrida e mansa: um paradoxo de suaves rugidos na noite dilacerada.
RW - 03.10.2014